BRASIL COM “Z”

PEQUIM (ela tem a força) – Rosângela Conceição tem 35 anos e é uma lutadora. Domingo, inicia sua caminhada em Pequim como representante solitária do Brasil na luta olímpica, categoria livre, 72 kg. Em maio, chegou à final do Pré-olímpico em Edmonton, no Canadá, garantindo sua vaga nos Jogos.

É sua segunda Olimpíada. Em 1996, esteve em Atlanta. De quimono, na equipe de judô, como reserva de Edinanci Silva. Em 2003, não se classificou para Atenas, “fiquei deprimida”, e decidiu mudar o rumo, por sugestão do técnico cubano Eugenio Fontes.

“O judô começou a ficar muito esse negócio de catar a perna. Então, tem bastante semelhança com a luta olímpica. Difere um pouco a posição, porque a gente luta com o joelho flexionado, mas dá para usar muitos golpes”, diz. “Eu já tinha assistido a algumas competições. Fui ver como era e comecei a treinar com o Eugenio, que me mostrou uma luta apaixonante.”

Rosângela Conceição mora e treina em São Paulo, na estrelada academia Fórmula do Shopping Eldorado. Mas fala “tu” o tempo todo, porque é gaúcha “com muito orgulho”, de São Leopoldo. E é esse sotaque gaúcho que ela empresta três vezes por semana ao Hospital Infantil Darcy Vargas, no Morumbi, num grupo multidisciplinar que cuida de crianças com Síndrome de Down. Ela ajuda a garotada na parte física, motora e nos fundamentos do judô. “Dá um resultado maravilhoso. Quando saio de lá, percebo que quem está bem sou eu, elas me ajudam muito mais do que eu ajudo a elas. Cada vez que volto, sinto que estou melhor do que quando cheguei.”

Rosângela Conceição, linda, cheia das tranças no cabelo, sorriso largo e aquele olhar de quem sabe exatamente o que veio fazer no mundo, é lutadora e é o Brasil com “Z” da nossa série. Porque na verdade ela é a Zanza, como gosta de ser chamada.

Você é a única brasileira na luta olímpica. Como é que faz para treinar no Brasil?

O meu treino tem de ser diferenciado, por causa da minha idade e da sobrecarga de trabalho. Acabo treinando com uma pessoa só lá na Fórmula, o Felipe, que faz jiu-jitsu. Treino luta olímpica de três a quatro horas por dia. Ele me ajuda muito, porque aplica várias técnicas de luta que a gente precisa usar nessa modalidade.

Deve ser duro esse negócio de treinar com homem, não?

Nada, é normal. No judô eu fazia isso, também. Não tem mistério.

Do judô para a luta, como foi a transição?

A filosofia é diferente. O judô tem origem oriental e a luta vem da Grécia. Na luta se valoriza muito a educação, o respeito pelo adversário, o espaço e a higiene.

Higiene?

É. Por isso que a gente tem que ter sempre dois lencinhos prontos para usar no caso de um corte, um sangramento… E uma toalha para se secar sempre, o tempo todo. Homem tem de estar barbeado, tem todas essas coisas…

Depois do bronze no Pan do Rio, no ano passado, o que está esperando aqui?

 Eu treinei para fazer o meu melhor. Não vai ser fácil. Tem uma búlgara que é bicampeã mundial e uma chinesa campeã olímpica que são as adversárias mais fortes.

Você falou que treina com um rapaz que luta jiu-jitsu. O jiu-jitsu tem uma imagem meio negativa no Brasil por causa desses caras que saem brigando por aí nas ruas…

É verdade. Mas esses não são lutadores, são baderneiros. Estragam a imagem da modalidade, que é muito bonita, um jogo de xadrez. Os bons professores de jiu-jitsu são muito especiais, eles acompanham você não só no tatame, mas na sua vida toda, também. Infelizmente, as pessoas acham que jiu-jitsu é essa coisa de bad boys, mas isso não é jiu-jitsu.

E o seu trabalho social com crianças com Síndrome de Down?

É no Hospital Infantil Darcy Vargas, no Morumbi. Eu faço judô com eles, mostro os valores humanos que o judô ensina, trabalho a parte física e motora. E a gente usa sempre uma frase que é muito importante: “Ser diferente é normal”. Esse trabalho dá resultados maravilhosos. Eu sempre saio de lá melhor do que entrei.

Que idade elas têm?

A gente acompanha desde o nascimento, o trabalho desse grupo começa na gestação. Mas para mim eles vêm a partir dos 4 anos. E é lindo, eles estão me mandando e-mails desejando boa sorte, fizeram desenhos, me dão uma força muito grande.

Agora, as perguntinhas metidas a besta… Qual a maior luta da sua vida?

A luta pela sobrevivência. No dia a dia, nos tatames e na área de luta. É tudo muito difícil no Brasil. No nosso país falta tudo. Acho que é isso, a luta para sobreviver a cada dia.

Uma luta inglória…

O trabalho que faço pelo humanismo. Essa é inglória, porque quando tu chega com essa proposta, até tocar o coração das pessoas, ouve muita barbaridade e vê muita indiferença.

Um grande lutador…

Daisaku Ikeda, um educador e humanista japonês que roda o mundo fazendo trabalhos sociais e despertando o amor das pessoas, um cara que luta contra as guerras e as injustiças, como essa guerra ridícula entre Rússia e Geórgia, que têm atletas aqui e a gente vê eles se abraçarem e competirem de um jeito tão bonito, coisa que só o esporte pode proporcionar.

Para terminar, qual a luta que você compra de olhos fechados, contra o quê você acha que vale a pena lutar até o fim?

Contra a indiferença social.

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Conde
Conde
15 anos atrás

Mulher com atitude . Conquistou muitas medalhas de ouro com essa entrevista . Sá aqui mesmo . Parabéns FG , Parabéns Zanza.

Lucas Siqueira
Lucas Siqueira
15 anos atrás

É isso aí FG, mais uma heroína de verdade, no caso, Z maiúsculo. Parabéns por nos mostrar essa deusa de ébano.

Daniel
Daniel
15 anos atrás

Gomes, parabéns, de verdade, pela série. Vou insistir nesse ponto: você deveria enviar para o ignorante do Flávio Prado, para ele ver que esse país não é feito só do futebol.

ciro
ciro
15 anos atrás

Flavio,

Sei que é um abuso mas…

Se você tiver oportunidade ou a sorte de encontrar com a Zanza por esses dias chineses, diga que ela conquistou mais um fã.

E mande um beijo pra ela.

Obrigado e um abraço.

Ciro

André Buriti
André Buriti
15 anos atrás

É isso que me faz acreditar que o país ainda tem jeito, pessoas como ela deveriam ser a regra, não a exceção.

Rodrigo Moraes
Rodrigo Moraes
15 anos atrás

Parabéns, Zanza! Medalha de ouro para você!

EdisPJ
EdisPJ
15 anos atrás

Além do exemplo de dedicação a causas humanitárias, ainda demonstra ter interesse por tudo o que se passa a sua volta, coisa rara em atletas de alto nivel já que, infelizmente, estão mais focados no próprio umbigo do que no resto. Sua situação também retrata fielmente o que passa com os heróis olimpicos brasileiros que, com raríssimas exceções, não tem condições, preparo adequado, logistica nenhuma, mas mesmo assim vão as olimpiadas, pra lutar com muita garra e dedicação. Pena que no Brasil se cobra muito e não se ajuda em nada. Está na hora de mudar isso, ao invés de cobrar medalhas, ajudar aos atletas para que eles se dediquem ao seu esporte…bom deixa pra lá, utopia de manhã cedo…

kuja
kuja
15 anos atrás

Bom. Muito bom.
Esta Olimpíada já ficou melhor.
Parabéns Flavio

Eric
Eric
15 anos atrás

Parabens Zanza.
O Brasil seria muito melhor se somente 30 % da população pensasse assim.

Hugo Caldas
Hugo Caldas
15 anos atrás

Grande Zanza! Linda! Por fora e por dentro!