LONDON, LONDON*

As lembranças.

Dois soldadinhos de chumbo, um com aquele chapéu enorme, o outro da guarda de honra da rainha. Restam numa caixa de sapatos.

Uma tarde de verão de 1989, a chuva que pára, o sol que aparece fugidio, é o tempo de bater o retrato, que fica lindo, ela de capa num pequeno jardim que nunca mais vou saber onde é, a luz dourada, o sorriso largo, os braços abertos, a foto de que mais gosto.

O sinal para o ônibus em Hyde Park, o passeio no andar de cima, comendo sanduíche e tomando coca-cola, sem destino, Abbey Road, nem sei se era mesmo, ficou sendo.

O jantar no restaurante indiano, a pimenta ardida, o chefe que virou amigo e nunca mais vi, o banho de banheira, as malas entupindo a salinha pequena, a visita à BBC que eu ouvia em ondas curtas.

O barco com nome de uísque, a linha do tempo, da hora certa, dos dias certos.

E é tudo que guardo de bom desta cidade, porque depois, quando voltei, e foram muitas vezes, sempre a encontrei fria, opressiva, cor de chumbo.

Nunca mais morri de amores por ela, fui-me distanciando, porque acho que nunca fui capaz de vê-la como o bardo que ao cruzar suas ruas sem medo, notar o verde de sua grama, o azul de seus olhos, o cinza do seu céu, a dor e a felicidade silenciosas de sua gente, disso tudo tirou versos e fez música.

Então a sangram, não mais será possível andar por ela sozinho sem sentir medo, e a vida vai aos poucos roubando nossa inocência e enterrando meus soldadinhos de chumbo e minha foto dourada.

Na madrugada fria rodo por ela, aqui e ali uma sirene, lá embaixo ainda há fumaça, destroços e carne, mas como só sei, e não vejo, vejo sim como ainda é bela aqui em cima, cruzando o rio e acertando o relógio, e como as madrugadas são sempre silenciosas é possível olhar para ela com outros olhos, o cinza desaparece, as luzes amarelas lhe dão uma estranha tonalidade, pequenos sóis que só surgem de noite e iluminam pouco, o bastante para sentir ternura.

Na desgraça a ternura volta, comigo é assim, mas é algo que não dá para explicar. Não é pena, não é dó, não é compaixão, não é nada disso, é apenas ternura por um lugar onde há séculos tirei uma fotografia e subi no segundo andar do ônibus vermelho, magrelo, cambaleante e divertido, barulhento e encardido, eu e o ônibus.

Londres, Londres, não somos mais os mesmos.

* Naquela mesma semana de 2005, essa foi minha coluna no Grande Prêmio e no “Lance!”. Só para constar.

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Flavio Perillo
Flavio Perillo
13 anos atrás

Gostei…como sempre fantástico!

lorente
lorente
13 anos atrás

Mr Gomes,,,,London London………..
Pois esta cidade qie adotei como “casa”, me fascina a cada dia…ja nao e a mesma de quando aqui cheguei a 24 anos atras porem ainda me fascina…e aqui tenho as raizes fincadas,,,mas me emocionei com o que vc escreveu sobre a minha cidade,,,,e caso retorne um dia sera benvindo Flavio.. Nao ira passear de “double decker”” mas sim de Kombi 1972….aqui com a familia,,,,
Regards

Mauri
Mauri
13 anos atrás

Lembro do cabeção Milton Neves interpretando esse texto e ficou excelente.Um belo texto.

Eduardo Britto
Eduardo Britto
13 anos atrás

Quem terá sido ela, pelos gramados impecáveis de um parque londrino? Londres que não conheço mas admiro pelo rock, por Beatles, Pink Floyd, Yes e tantos outros… Escrevo ouvindo os rojões no parque Antártica, após o jogo com o Boca, na despedida do estádio antes da reforma. Que traga sorte e os jogos paulistanos venham para cá, medida honesta com nossa realidade nada londrina, muito 3º mundo. Valeu.

Orlando Salomone
Orlando Salomone
13 anos atrás

Os maiores criminosos são os que nos roubam a inocência.

Brown
Brown
13 anos atrás

Vamo trabalhar meu fi!!!

ChristianS
13 anos atrás

Uma das melhores!

Durvaldisko
Durvaldisko
13 anos atrás

Gomes, todos temos suas “madeleines”.As suas são os soldadinhos.
PS.:Heráclito dizia que não se banha duas vezes no mesmo rio.Ainda que seja o Tamisa…

Eder Casagrande
Eder Casagrande
13 anos atrás

Parabéns!
To esperando o livro nº 2…

Antonio
Antonio
13 anos atrás

Pô, tu escreve pra cacete.

Paulo Z
Paulo Z
13 anos atrás

Show de bola!

P.S. Associo Londres, entre outras coisas, a um carrinho da infância, um MATCHBOX, uma van BEDFORD amarelinha do jornal EVENING STANDARD.

Edu de PoA
Edu de PoA
13 anos atrás

Tá, Flávio, chega de frescura. Tu estás querendo ouvir: TÁ NA HORA DE LANÇAR O “BOTO 2” com o resto das crônicas. Até porque não estão mais disponíveis no site.
Alessandra, dá um jeito nesse guri!!

Eduardo
Eduardo
13 anos atrás

Mesmo, as vezes, passando uma imagem de “durão”, vc é de uma sensibilidade incrivel…Acho que vc deveria mudar pra Cronicas do Coração, ao inves de Diarios de Viagem…Ah, O Boto do Reno é Maravilhoso…Muito Obrigado por mandar autografado…Abs…

Danilo Albergaria
13 anos atrás

Escreves pacas, hein?

Andrea Lowin
Andrea Lowin
13 anos atrás

Eu sempre me emociono com as suas histórias, porque você escreve de forma poética e singela. Você foi criando as imagens ao longo da narrativa e me vi lá no seu passado enxergando com seus olhos e isso é fascinante. Obrigada.