BREVES HISTÓRIAS DE VIAGEM (1)

RIO (passando a limpo) – Leipzig, semana retrasada.

Viajo muito sozinho porque acho que ninguém gosta muito de fazer as coisas que eu gosto. Então fui parar num museu da Stasi na cidade onde, em 1989, começou a acabar a Alemanha Oriental.

Não estou a fim de checar datas no Google, então vai tudo de cabeça.

O prédio era a sede da polícia política da DDR na cidade. Chamavam-no de “esquina curva”, por óbvio — a primeira foto mostra claramente o tipo da construção, a escadaria em forma de meia-lua na entrada que levou ao apelido da construção, onde durante semanas a população de Leipzig colocou velas como forma de protesto.

[bannergoogle]Metia medo, como o prédio do Dops em São Paulo. Mas, nos últimos meses de 1989, quando reuniões na principal igreja da cidade começaram a tomar forma de revolta, foi diante dele que começaram as manifestações contra o regime. Leipzig foi onde as pessoas tomaram coragem e foram para as ruas. Em 9 de novembro, a algumas centenas de quilômetros dali, caía o Muro de Berlim.

A Stasi tinha coisa de 265 mil agentes na Alemanha Oriental, entre funcionários oficiais do Ministério para a Segurança do Estado e colaboradores informais. Espionavam e vigiavam tudo — assistam a “A Vida dos Outros” para entender, um dos filmes mais lindos que já vi. Se metiam na vida de todo mundo. Era uma forma de o Estado controlar a população e tirar do caminho quem ousasse desconfiar de sua utopia. Nada muito diferente do que as pessoas fazem hoje com as redes sociais — com a diferença essencial de que se auto-espionam, dão salvo-conduto a gigantescas corporações americanas para escarafunchar suas vidas e negociar seus dados e perfis, e não há utopia alguma no horizonte.

Os cidadãos de Leipzig tomaram o prédio, quando perceberam que os agentes da Stasi estavam destruindo documentos após a queda do governo comunista. Ninguém queria entrar para a história como dedo-duro. Hoje, qualquer cidadão da DDR pode consultar os arquivos e saber o que dele se sabia, e quem informava o governo. No mesmo prédio. À esquerda da entrada, fica o museu. À direita, o arquivo.

Num painel, aparece uma redação de um estudante de, sei lá, 15 anos. Talvez 14, não anotei. Johannes Herklotz, nono ano do ensino básico. Consta que ajudou a derrubar o Muro poucos meses depois. OK, pode ser um exagero. Mas o menino fez em seu texto um libelo revoltado contra os altos preços dos Trabis e Wartburgs. Para ele, os carros eram ruins e muito caros. E ele queria catalisadores já –, ah, esses jovens preocupados com a camada de ozônio, como são petulantes! E ainda falava um monte de coisa sobre Michael Jackson.

A redação foi cair nas mãos da Stasi. Que chamou o diretor da escola e determinou que ele fizesse alguma coisa — tipo entregar a mãe do moleque, ameaçar a família, acabar com o futuro do menino com uma anotação na caderneta que o jogaria numa lista negra para todo o sempre. O diretor da escola disse que não tinha nada a ver com a vida particular de ninguém e não fez nada.

Foi uma rara — e corajosa — reação a uma ordem superior que indicava o que viria pela frente. Como assim, contestar uma ordem da polícia secreta? O que estava acontecendo com o povo alemão? A recusa em obedecer os temidos agentes da Stasi, naquelas semanas que antecederam a queda, era uma clara demonstração de que os alemães orientais já estavam de saco cheio, tinham ligado o foda-se e estavam dispostos a enfrentar seus opressores. Que, justiça seja feita, não batiam, espancavam ou torturavam fisicamente ninguém. Nesse sentido, a ditadura brasileira foi infinitamente mais cruel.

De tudo, só fiquei irritado com o moleque falar mal de Trabis e Wartburgs. Se fosse seu colega de classe, não iria entregá-lo à Stasi, porque não sou de caguetar ninguém. Mas teria ficado com vontade.

Catalisadores… Vá à merda.

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Sergio
Sergio
6 anos atrás

Valeu pelo filme!!

Marcelo Barbosa
Marcelo Barbosa
6 anos atrás

A Vida dos Outros foi o último filme que vi no cinema ali embaixo do seu escritório (Bristol?). Foi com chave de ouro, puta filme.
Abraço!

Thiago
Thiago
6 anos atrás

O texto é ótimo. Mas sobre a tortura, como qualquer regime opressor e ditatorial, existiu e foi bastante cruel, não muito diferente das ditaduras sulamericanas da época.

http://blogs.odiario.com/bahr-baridades/2013/11/09/horripilante-prisao-feminina-alemanha-oriental/

Diego Zomer
Diego Zomer
6 anos atrás

revolução dos catalisadores, hoje motores elétricos… todos, de alguma forma, temos um lado conservador. Uns pelo saudosismo, outros pelas brincadeiras de infância, outros por algumas aberrações…. Creio que ficaremos pelo cheiro de gasolina. Da minha parte, espero não ver isso.

Clovis
Clovis
6 anos atrás

Realmente, a Stasi utilizava métodos mais psicológicos para extrair informações de seus detidos/interrogados. Um método que foi levado à excelência é o de longos interrogatórios, por horas e horas, o sujeito sentado numa cadeira com pano, que estava absorvendo o suor e seu cheiro, para que, em caso de necessidade, os cães treinados da Stasi pudessem localizá-lo mais facilmente. Faziam também o método de entrar na casa do “alvo” e fazer pequenas mudanças, que podiam ser levadas por um engano da pessoa…tipo mudar a marca de algum produto que a pessoa comprou, mudar uma fotografia de lugar, telefonemas silenciosos em horários descabidos, esvaziar os pneus da bicicleta do vivente. Isso ia entrando na mente da pessoa, que invariavelmente questionava sua própria sanidade, Jurgen Fuchs foi um deles.
Até os anos 50…havia violência na Stasi, sim, mas esse método era considerado ineficaz. Nada se compara à antecessora, Gestapo, essa sim um moedor de carne, só não sei se pior que nossos porôes brazucas.

FERNANDO
FERNANDO
6 anos atrás

Bom dia Flavio
Gostaria muito de te pedir um grande favor.
Me identifiquei muito com a sua viagem recente, aliás, me emocionou muitas vezes com sua delicadeza no olhar, nas escolhas das palavras, quem conhece a história sabe que você queria passar uma grande mensagem. Fico feliz em começar agradecendo e dizendo que a mensagem chegou e aprendi muito.
Agora vamos lá, por conta da condição financeira estou bem receoso quanto a fazer a mesma viagem e de fato me realizar, sentir e aprender o que você sentiu. Por isso, existe a possibilidade de você me mandar o roteiro que foi feito? resumo de gastos detalhados ( hotel/arbnb, trens, dicas de locomoção interna… ) a Internet ja é difícil, imagina um roteiro alternativo como esse.
Quanto mais detalhado conseguir melhor, ficaria muito feliz e poderia me programar ao ponto de realizar esse grande sonho.
Ja salavei a maioria dos seus vídeos/destinos organizei tudo e resolvi te escrever.
Obrigado duas vezes, pelo aprendizado e agora pela inspiração e realização de um sonho.
Meu email caso necessário: [email protected]
Grande abraço camarada!

Thiago Gomes
Thiago Gomes
6 anos atrás

Poxa, vc poderia ter achado um tempo e ido pra Austria para assistir MotoGP. Seria uma experiencia boa, nao?

Joca
Joca
6 anos atrás

Concordo em abrir um buraco na camada de ozônio. Não aos catalizadores. Chega de politicamente correto, A volta dos motores dois tempos, óleo M 50, óleo de peroba, bastante fumaça e cheiro que poucos reconhecem. Saudades.

Paulo Leite
Paulo Leite
6 anos atrás

Sou viciado em Museus, além de tudo, é o lugar mais seguro para evitar encontro com turista brasileiro no exterior.

TARCISIO FRASCINO FONSECA
TARCISIO FRASCINO FONSECA
Reply to  Paulo Leite
6 anos atrás

Triste realidade.

wilson
wilson
6 anos atrás

Tá certo Sr. Flavio Gomes, os caras da Stasi eram uns santos. Toda forma de opressão e intimidação também é violência. Tenha lá sua ideologia, mas não seja parcial. Afinal você é um cara inteligente, ou não? Abs

carlos lima
carlos lima
6 anos atrás

Texto excelente. O leitor não resiste à verve bem humorada e crítica das “breves histórias de viagem” do escriba. Que venham mais. Bravo!

joel lima
joel lima
6 anos atrás

A vida dos outros e Adeus Lênin são ótimos filmes e retratam muito bem esse período. Ironia da história = os regimes fechados como a Alemanha Oriental se valeram de uma rede imensa e complexa de espiões e caguetas pra obter dados sobre a vida de alguém. Fora que é muito bom ouvir um filme cuja língua não é o inglês ( nada contra a língua de Shakespeare. É só pela saturação mesmo rs ) Hoje, pelas redes sociais, as pessoas passam todos os dados e passos da sua vida de forma espontânea. Orwell, de onde estiver, deve achar seu magnífico 1984 um livro descaradamente otimista comparado ao que vemos hoje com as redes sociais. [rs]

Leon Correia Neto
Leon Correia Neto
Reply to  joel lima
6 anos atrás

Joel, logo depois de ler essa coluna, me deparei com o documentário “Karl Marx City” na Netflix. Gostei muito e tem tudo à ver com o assunto. aqui vai o link com algumas informações (em inglês).

http://karlmarxcity.com/

bruno Wenson
bruno Wenson
6 anos atrás

Grande Flávio e seu humor único.
Textos de suas viagens são sempre excelentes pra ler e refletir nosso dia a dia tão enfadonho ou complicado.
Tive uma tarde incômoda. Seu texto ajudou a repensar a atitude.
Valeu!!

Leon Neto
Leon Neto
6 anos atrás

Muito interessante. Adoraria visitar esse museu. A história se repete; na Venezuela a SEBIN vem fazendo a mesma coisa e muito mais. Chegaram ao ponto de parar transeuntes à esmo e pegar o celular pra ver se tem alguma coisa contra o governo. Se não acredita pergunte pro Lourival Sant’Anna.

Alessandro Zelesco
Alessandro Zelesco
6 anos atrás

Quando estava metido na luta pela preservacao do uso publico de um espaco publico esportivo, como eh o caso do Estadio de Remo da Lagoa, muitas vezes fazia o percurso Lagoa – Botafogo no meu jipe DKW com um sistema de som acoplado a uma corneta, denunciando a cumplicidade das “otoridades” com a privataria realizada e os prejuizos para a populacao. Certa vez ao parar no semaforo na praca N.S. da Paz um cidadao ficou indignado com a fumacinha produzida pelo motor 2T e a pretensa incongruencia de lutar pela preservacao de um bem publico “poluindo” o ambiente. Um tipo ridiculo. Deu mesmo vontade de manda-lo a merda…

zezinho
zezinho
6 anos atrás

É como no Brasil de sempre: sem discutir qualidade, paga-se muito alto pelos produtos e serviços aqui, para sustentar estruturas de governo, seja de direita, esquerda ou golpista e beneficiar poucas pessoas na sociedade em geral. Talvez, somos a população que mais muros se têm para derrubar. Falta coragem para nosso povo aproveitar esse momento político conturbado e comparecer em massa nas ruas para reescrever nossa história.

irapuam
irapuam
6 anos atrás

Não sei exatamente o motivo, mas a história da Alemanha pós guerra até a queda do muro me fascina. Muito provável que é pela relação com meus antecedentes.
É incrível como a Alemanha preserva sua história.
Sempre associo algum registro dessa época com uma recordação do meu Opa (Avô) que, já velhinho e debilitado, e eu ainda bem pequeno (uns 6 anos), brigava como um louco para que as crianças não desperdiçassem água ou deixassem um restinho de comida no prato. E não importava a fartura de água ou comida.
Muitos anos depois entendi que eram resquícios de uma cultura de guerra e pós guerra, que incorporou isso em muita gente mundo a fora, em face as dificuldades que enfrentaram.
Os valores hoje são outros.
Eu ia comentar sobre a comparação entre as ditaduras, a brasileira e alemã oriental, mas acabei entendendo o seu ponto de vista. E o respeito.
Essa viagem deve ter sido fantástica!!

Sonhador
Sonhador
Reply to  irapuam
6 anos atrás

Bom dia,
tive um amigo que sua irmã foi morar na Alemanha, um determinado dia ela jogou um pão fora, uma vizinha bateu à sua porta com o pão na mão e soltou o verbo nela, toda assustada falou que o pão estava mofado, então a vizinha retrucou, senão ia comer, não compra-se, vocês não sabem o que é fome…

Fernando Bento
Fernando Bento
6 anos atrás
sergio
sergio
6 anos atrás

Ufa! que bom que estamos de volta…

Marcelo Meyer
Marcelo Meyer
6 anos atrás

A Stasi não torturava? Desculpe, mas vc precisa melhorar as suas fontes… ou essa frase é apenas uma maneira de tentar convencer os incautos que a DDR era um bom governo, comparado com a ditadura brasileira?

Marques Goron R. da Silva
Marques Goron R. da Silva
6 anos atrás

265 mil vagabundos sustentados pelo estado. Era muita gente mamando na Stasi…

Paulo F.
Paulo F.
Reply to  Marques Goron R. da Silva
6 anos atrás

Mas ninguém ganhava acima do teto…..
Já os togados de Pindorama….

Rafael Santos
Rafael Santos
6 anos atrás

Que baita história!

claudio conrak
claudio conrak
6 anos atrás

Também prefiro viajar sozinho F Gomes, no máximo com a familia, já pacotes excurções??? prefiro ficar em casa assistindo TV documentarios de lugares diferentes!!! O mais impressionante foi como o povo alemão aceitou ficar dividido devido a interesses politicos da URSS E USA…… quem se submete a poderes podres no fim nao pode reclamar né,,,,,,,, e às vezes é preciso um menino ou uma criança pra alertar toda uma população de como a situação está podre!!! lembra da historia do rei está nu!!!!! Se algum governo ou empresa dissesse assim: vou ver toda sua intimidade, o que gosta, preferrencia, o que apoioa ou não onde trabalha, etc… ver fotos, videos, etc…. todos diriam que ninguém pode fazer isso, mas todos deixam os facebooks da vida fazerem isso adoidado!!!!! A alemanha oriental mostrou que um governo podre pode prejudicar mesmo uma população que trabalha e produz e tenta se desenvolver e que o melhor é a interferencia mínima do estado na vida do cidadão!!!! O LESTE EUROPEU TAQMBÉM MOSTROU ISSO!!!

Carlos Albuquerque
Carlos Albuquerque
6 anos atrás

Como é bom ser livre e poder viajar para onde der na telha…

Carlos Pimenta
Carlos Pimenta
6 anos atrás

Onde estará esse moleque hoje ? E o Diretor ? Que pelo jeito cultuava o livre pensamento, mas, pensando bem, será que o questionamento do alto preço dos Carros não seria porque ele desejava ter um!!! e sabia que com os preços praticados seria difícil?? A fumacinha do M50 é muito boa. Bom, tirando as brincadeiras, sensacional este Editoria (é isso mesmo?), uma coluna desta todas as manhãs, pelo menos umas duas vezes por semana seria bom. Vale a leitura, quanto a indicação do filme, este fim de semana. Obrigado. PS- Em tempo, Pau de Arara, ninguém merece.

rafaelle
6 anos atrás

Adorei o texto, época doida do mundo, e parece que a historia, é como as estações. Tenho grandes preocupações com as redes sociais. (chega a ser pavor). Toda as informações, a grande variedade delas, isso ainda vai dar merda, (imagina um androide que te conhece desde que você nasceu? Te encontra na rua e lhe diz parabéns pelo seu aniversário!
Tem uma história que o Hitler usou arquivos de uma entidade que buscava resolver problemas religiosos na Europa e catalogou os diferentes grupos, foi muito fácil encontrar os Judeus.
Tomando uma na rua ontem, e senti aquele cheiro ruim dos catalizadores mais antigos, pensei na hora HAHAHA o Flavio Gomes deve odiar esse cheiro, e o café da manha ficou mais alegre com esse texto.
O alemão tem uma bela caligrafia, fiquei com inveja. Da escola dele.

Roberto Mota
Roberto Mota
6 anos atrás

Com as modificações certas, qualquer carro pode se transformar em um canhãozinho. Até um Lada Laika (com todo o respeito, claro…rs).

https://www.youtube.com/watch?v=mFdQkvDh7jU

Alair
Alair
6 anos atrás

Quer dizer que não espancavam e não torturavam? Por que? Teriam desaprendido o que aprenderam com a Gestapo e com a NKVD?
Menos Flávio, menos.
Bom dia.

Angelo
Angelo
6 anos atrás

Vou embora, não nervoso, não cheio de razão, que seria infundada, a razão mas temos abissais diferenças de pensamento. Um dia vi você deixando seus meninos no Arqui, aqui pertinho de casa e onde minha filha, também estudou e falei que a cor do seu carro era azul calcinha no que fui corrigido, precisamente, por você…onde já se viu um Trabi com esta cor? Heresia da minha parte, com certeza mas não comungamos das mesmas idéias e não tenho o direito de aceitar que a ” Stasi foi menos violenta que a nossa ditadura”. fui embora e, acho que tarde! Obrigado pelos belos textos e conhecimento de automobilismo.