O SEDÃ BRANCO

RIO – Dez anos atrás, não havia redes sociais. Nem smartphones, até onde me lembro. O máximo de modernidade a que Leandro Alfonso, o Veloz HP, se submetia — e se permitia — era enviar e-mails.

Mesmo assim, de forma reticente. Preferia as cartas, escritas a mão com letra caprichosamente desenhada, um rigor absoluto com nomes, datas, eventos. Escaneava e imprimia fotos. E colocava tudo no correio. Não creio que se renderia às ferramentas que usamos hoje. Seria tudo exatamente igual.

A necessidade de falar com mais urgência, para registrar sua indignação diante dos gostos esquisitos do blogueiro bolchevique, era atendida com comentários enviados nas postagens que elogiavam a URSS, os Ladas, a glória soviética.

Eram tempos de ternura — incrível dizer isso de apenas dez anos atrás, incrível como o mundo piorou tanto em dez anos.

Veloz HP me provocava com carinho e elegância. Eu morria de rir de tudo que escrevia. Era um gênio, um sábio, um profundo e autêntico amante daquilo que nos une: carros, motos, velocidade, corridas.

Quando o velho DKW #96 virou o bibelô dos leitores deste blog, que havia nascido pouco tempo antes, em dezembro de 2005, eles se organizaram para ver algumas corridas em Interlagos. Um belo dia, o misterioso Veloz HP apareceu por lá, óculos de lentes grossas, com uma jaqueta de couro, uma garrafa de uísque — para os outros, porque ele não bebia nada de álcool –, sua moto e o sorriso da criança crescida que, finalmente, reencontrava os seus.

A convivência durou pouco, menos de um ano, porque numa segunda-feira, dia 18 de fevereiro de 2008, Veloz HP não se levantou para pegar o jornal. Morreu dormindo, nos deixando chocados, arrasados, tristes e indignados pela deselegância de partir sem dizer adeus.

Mas poucos dias depois, passou a nos enviar suas mensagens de algum lugar, a primeira delas essa aí embaixo.

veloz10Kamarada Gomes, como vão as coisas aí embaixo? Foram dias estranhos, estes últimos. Tive um sonho incomum, em que um sedã branco estacionava à minha porta e me chamava insistentemente para uma longa viagem. Apaixonado que sou por sedãs, especialmente esses sedãs, entrei e resolvi ver aonde ele ia me levar. Era tudo um sonho, nos sonhos somos livres, fazemos tudo que queremos, então fui. A viagem foi tranquila e confortável, mas o cenário não me era familiar. Até que, em determinado momento, o sedã parou, minha porta se abriu, eu saí. Ao longe notei um grupo de pessoas, essas sim familiares, e me aproximei sem medo, apenas curiosidade. Era uma espécie de comitê de recepção, mas eles nem notaram minha presença, acho que cheguei atrasado. O que é estranho, pois aquele sedã nunca se atrasa. Aos poucos fui reconhecendo Tazio, Bernd, Jim, Gilles, Ayrton, Adú, Jacaré… Ora, ora, todos velhos conhecidos de minhas revistas e fotografias, então foi aqui que se meteram? Conversavam animadamente, até que um deles, acho que Clay, notou minha chegada e gritou buon giorno!, e todos se viraram e bateram palmas. Achei que eram aplausos para o carro, você sabe que esse carrinho é aplaudido por onde passa, mas que nada, um deles, Elio, deu um passo à frente, estendeu sua mão direita e me disse benvenuto, ragazzo. Você sabe que sonhos são esquisitos, então não me pergunte por que escolheram o italiano como língua corrente, pois não saberei explicar. Um por um, todos vieram me cumprimentar, e aí o idioma mudou, cada um falava numa língua diferente e eu compreendia todas elas. Então Elio tomou meu braço e começou a me mostrar o lugar. Identifiquei algumas curvas de minha infância, escutei sons e roncos que estavam em algum canto da minha memória, senti cheiros que não sentia havia muito tempo, e percebi que o sedã tinha me levado para um tipo de colônia de férias. Reparei nas lindas moças de minissaia, me ofereceram uma Cuba Libre, e eu que não bebo experimentei e gostei muito. Havia música no ar, também, e tudo parecia muito perfeito e bonito, como é nos sonhos. Bem, kamarada, você me conhece, a mim tanto faz como tanto fez se é um sonho ou vida real, e entre este e aquela, preferi este. É por aqui que ficarei. Mandarei notícias, claro. Todos os dias, se possível. Mas pode ser que não tenha tanto tempo assim, porque já percebi que aqui terei muito o que falar com amigos que chegaram antes, não faltará assunto. E enquanto você e todos não vêm, enquanto esperam pelo sedã branco na janela, que um dia virá, sigam acelerando. Acelerem sempre, o tempo todo. O fim será aqui, e vocês todos verão que terá valido a pena. Abraços, Leandrov Alfonsov.

Quando nos escreveu, sorrimos novamente. Todos compreendemos que a escolha tinha sido a melhor de todas, quem somos nós para concorrer com a turma que, cedo ou tarde, nos receberia também?

Se foram dez anos, lembrou o amigo Edison Guerra numa breve mensagem pelo Facebook ontem. A vida por aqui anda meio pesada, kamarada. Você não gostaria muito, não.

Mas continuamos acelerando, de um jeito ou de outro. Às vezes alguns motores quebram, pneus furam, o combustível parece que não vai dar. Mas vamos continuar assim, até onde der, até o dia em que o sedã chegar, porque ele chega, um dia.

Ainda bem que você nos preparou para ele.

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Edgar V Fernandes
Edgar V Fernandes
6 anos atrás

Nossa.. incrivel… 10 anos… como passa rápido.. os matusas estão cada vez mais matusas… kkkk

Maximo
Maximo
6 anos atrás

O Veloz era FODA!
Conseguia fazer o mais ácido dos comentários com a maior doçura do mundo… Foi um prazer e uma honra conviver com ele…

marcos andre
marcos andre
6 anos atrás

Muito legal a foto com o professor Sidney , piloto carioca das antigas , presença frequente nos encontro do Puma clube do Rj

Tohmé
Tohmé
6 anos atrás

Que anos legais que passamos, não Gomes?
Aqueles encontros com todos em uma das salas, com comes e bebes.
Veloz HP com suas histórias e sua alegria.
Realmente nos chocou muito a morte dele.

RICHARD
RICHARD
6 anos atrás

LINDO TEXTO!
PARABÉNS!
CONTINUE ESCREVENDO SEMPRE!!!

Gustavo
Gustavo
6 anos atrás

Boa noite.

Definição: sensacional!

Nick B.
Nick B.
6 anos atrás

Oi, Fla. Oi todo mundo.
Eis aqui Nick B dando as caras para homenagear o meu inesquecível amigo virtual Veloz HP.
Leandro, para mim, era um gênio. Sujeito ímpar, espécime raro de um tipo de homem que infelizmente está cada vez mais escasso nesse mundinho que vivemos.
Seus comentários eram um deleite diário, de graça, que tínhamos no blog do Fla. Eu sinceramente pagaria, se necessário fosse, para ler suas pérolas. As provocações do FG e as respostas ácidas, cáusticas de Veloz eram minha leitura diária obrigatória.
Um prazer ter conhecido aquele menino sensível, inteligente, sagaz. Mas nossa convivência virtual pouco durou.
O implacável sedã branco veio buscá-lo bem antes do que nós, seres humanos falhos, limitados e ignorantes da existência humana, imaginávamos e queríamos.
Perda irreparável para o blog, família, amigos, mundo.
Mas é assim que é a vida.
Desisti de entende-la há tempos.
Fica em nossos corações a lembrança e a honra de ter compartilhado a amizade deste grande menino-homem que não tinha frescura em nos distribuir a sua fonte inesgotável de conhecimento sobre os mais variados temas.
E fica a saudade que somente os bons deixam quando se vão.
E esse meu breve retorno é em sua homenagem, amigo Veloz.
Espero que tenha gostado das minhas simples palavras advindas do coração, escritas por dedos trêmulos, revisadas por olhos marejados.

Em silêncio.
Nick B.

marcos andre
marcos andre
Reply to  Nick B.
6 anos atrás

jurava que vc era um personagem do FG.. mencionei vc em um comentário..

virgo
virgo
6 anos atrás

Grande Leandro, saudades daqueles tempos…
Сохранить друга!

CorredorX
CorredorX
6 anos atrás

Eu também morria de rir das correspondências do velow hpow. Nem parece que faz tanto tempo assim, mas faz…o que me dá uma vaga idéia do quanto estamos por aqui por esse blog… acelerando, como gostaria o Leandro.

Paulo F.
Paulo F.
6 anos atrás

” nos sonhos somos livres, fazemos tudo que queremos, ”

Suprema sabedoria!

Veloz faz falta nestes tempos sombrios e tristes!

REINALDO SILVEIRA
REINALDO SILVEIRA
6 anos atrás

Grande Veloz! Certa vez ele fez um comentário elogioso em uma postagem sobre meu Maverick GT na seção Meus Calhambeques.
Saudades dele.

Daniel Granja
Daniel Granja
6 anos atrás

Como eram legais os farnéis. Que saudades dessa turma…..

Acarloz
Acarloz
6 anos atrás

Eu tava lá, saudades.

Rodrigo
Rodrigo
6 anos atrás

PQP que post espetacular.
Obrigado.

ps: Escreva mais, por favor. O Youtube não pode vencer.

Marcelo Foresti
Marcelo Foresti
6 anos atrás

FG,
Saudades dos farnéis….
Lembro, como se fosse hoje, do mural do HP que montamos em um dos farnéis. Tenho as fotos em algum arquivo que não estou encontrando, mas minha memória “ainda” está boa. O HP era uma figura e conhecia, como poucos, este objeto de nossa paixão: borracha e gasolina!!!
Pode parecer incrível mas, às vezes, ainda saio de moto com a camiseta que fizemos para a despedida do #96…
Realmente o mundo era melhor…
Abs

Wagner Neves
Wagner Neves
6 anos atrás

Caracas!!! Dez anos??? Flávio, você é meu amigo íntimo há mais um pouco do que isso (embora não faça ideia de quem eu seja. rsrsrsrs). E comecei a gostar do Veloz HP somente pelas suas citações a ele. Eta, tempinho que não perdoa… Estou pasmo. Como falaram aqui em cima, você é feio e a gente tolera os vídeos, mas sua escrita é simplesmente arrebatadora. Que essa “caneta” nunca fique sem tinta. Abraço.

Marsal
Marsal
6 anos atrás

Adorava os textos dele, nossa 10 anos, o tempo tb está acelerado.
Aproveita para descansar agora Veloz, tá para chegar uma turminha boa ai.

Helmut
Helmut
6 anos atrás

Me lembro bem desse post… Imprimi o mesmo na época e guardei dentro do O boto do Reno.

Atenágoras Souza Silva
Atenágoras Souza Silva
6 anos atrás

Eu adorava os textos do Veloz HP.
Eram muito engraçados e bem escritos.
Acho que teve um em que ele mostrou uma foto meio tensa, meio engraçada, e falam que tentaram salvar uma mulher do suicídio com os conhecimentos de psicologia adquiridos no curso via correspondência do Instituto Universal Brasileiro…

Um grande abraço do fundo do meu coração vermelho de outubro de 1917,
Atenágoras Souza Silva.

jbchaves
jbchaves
6 anos atrás

Chefe, tem uns posts seus que dá uma suadeira “nos zóio”…putz!!!

AS
AS
6 anos atrás

Escreve muito…. muito…. bem.

marcos andre
marcos andre
6 anos atrás

Caramba…

sao mais de 10 anos acompanhando essa bagaça aqui… lembro bem do seu comunicado sobre a partida do mìtico Veloz HP, que até a sua aparição eu jurava ser um personagem para animar o blog, como da mesma maneira também acho que o Nick B é um personagem, lembra que te enviei uma foto de um lada cor de rosa, dizendo que havia localizado o sumido Nick..

Enfim, coisas da vida… 2007 ficou marcado na minha vida pra sempre… 9 dias após a partida do nosso amigo virtual, eu perdia a minha irmã… lembro que durante este ano o sedan branco fez mais algumas viagens … e em uma delas, levou também o meu pai em novembro…

Vida que segue !

Nick B.
Nick B.
Reply to  marcos andre
6 anos atrás

Meu caro Marcos, obrigado pela lembrança.
Você tem razão em partes no que diz.
Veloz era de carne e osso. Não era um personagem. Uma figura, isso sim!!!
Prazer ter conhecido virtualmente o Leandro e gozar de sua amizade.
Nick B – aí está o seu acerto – é um personagem.
Nick B. não existe na vida real. Foi criado especialmente para interagir no blog do Gomes.
Taí um pouquinho do Nick sendo revelado.
E para completar: ninguém, absolutamente ninguém, conhece o criador do Nick. E, sinceramente, não sei se um dia isso será revelado.
Se for, o Fla será o primeiro.
Mas por enquanto é isso.
Abraço.

Nick B.
(Ouvindo a maior banda de rock progressivo do Brasil O Som Nosso de Cada Dia, com Sinal da Paranoia. Banda do saudoso Manito, ex-Incríveis. Manito, Pedrão Baldanza e o também saudoso Pedrinho Batera. Procurem no YouTube essa música. Vejam que primor de letra atualíssima composta em 1974. Ouçam a virtuosidade desses músicos fantásticos. Demais!!!).

marcos andre
marcos andre
Reply to  Nick B.
6 anos atrás

nao tinha visto sua resposta… por trás de um personagem , tem uma pessoa inteligente, muito inteligente, seria legal vc voltar com frequência

obrigado por nos fazer rir naqueles tempos

Manoel
Manoel
6 anos atrás

Prezado Flavio, bom dia!
Acompanho o sue Blog a uns 7 anos e não tenho o costume de escrever ou comentar os postes, mas o costume de te ler tudo que você escreve é constante. Ainda mais com textos como esse, linda homenagem ao seu amigo!

Nada contra os videos, também são bem legais, mas a sua escrita é indescritivel, acida e irreverente mas ao mesmo tempo poética e sensível.
Hoje escrevo apenas para dizer que sou teu fã e te pedir que, por favor, escreva mais.

Cristiano Azevedo
Cristiano Azevedo
6 anos atrás

Para sempre, Veloz.

Jovino
6 anos atrás

Gostava dele, de suas quase cronicas com os assuntos que o flavio escrevia so para provoca-lo, nos seus comentários, as vezes, ácido, irônicos, mas cheios de conhecimentos e informações que eu adorava ler. A sua partida ainda jovem nos pegou de supetão e não tínhamos mais os seus comentários para curtimos.jovino

Mansell
Mansell
6 anos atrás

O tempo é implacável…como voa

João Henrique Leme
João Henrique Leme
6 anos atrás

Confesso que não segurei o choro.

Gus
Gus
6 anos atrás

Grande VELOZ-HP; esse merece ser lembrado…lembro de algumas celeumas muito interessantes com o nome de Oscar Niemeyer – o VELOZ não perdoava e não fazia concessões. A pena às vezes pingava veneno e uma preocupante prepotência, mas creio que era apenas jogo de cena, um chiste com os menos vividos e letrados.
Faz falta nos comentários, assim como o Commendatore…o tempo passou VELOZ para frente, mas parece que em muitos pontos apenas regredimos.
P.s: Eu vi o nome do VELOZ em algumas cartas endereçadas (e publicadas) na saudosa MOTOR 3 – quando as encontrei nos sebos – e todo o conhecimento e a curiosidade já estava lá, latente.

Silvestre
Silvestre
6 anos atrás

Textos como esse nenhum vídeo no youtube substitui! Assisto o GP as 10 mas, por favor, não deixe de escrever aqui!!

Roberto Borges
Roberto Borges
6 anos atrás

10 anos já?
Lembro quando postou a triste notícia…
Mas 10 anos? Puxa!
Não conheci o Veloz HP pessoalmente, mas pelo que você postava era como se fosse.
Bela lembrança!
Mas como o tempo nos prega peças…10 anos!

Antonio Seabra
Antonio Seabra
6 anos atrás

Sem palavras.
Só respeito.
Antonio