RIO, 1984

ingresso1984SÃO PAULO (no pictures) – Se eu disser que lembro de muitos detalhes, estarei mentindo descaradamente. Mas fui ao GP do Brasil de 1984, a corrida de estreia de Ayrton Senna na F-1, que completa hoje 30 anos.

Curiosamente, minha lembrança mais clara é a do ingresso. Isso mesmo, o ingresso. Foi a primeira vez na vida que entrei  em algum lugar de porte de um cartão magnético. A entrada para a corrida tinha estampada a face de Nelson Piquet, campeão do ano anterior, e fora comprada no Unibanco, que era o banco oficial do GP.

Guardei por anos aquele cartão bege, que ainda deve estar em alguma caixa de sapato. Normalmente eu encontro essas coisas, mas não achei. Por isso recorri à santa internet para pingar aqui uma reprodução.

E do quê me lembro?

Bem, da viagem, claro, porque éramos quatro ou cinco moleques recém-habilitados que começavam a descobrir as delícias de ter um carro e poder ir a qualquer lugar. Na época eu trabalhava no “Popular da Tarde”, mas não ganhava nada e tinha de me virar com o salário que meu pai me pagava para cuidar da firminha de entrega de água mineral em São Caetano. Meu maior prazer era pegar a Kombi de sexta-feira e visitar a fonte, voltando carregado de garrafões. De noite, fazia faculdade.

Acho que fomos para o Rio na sexta à noite, e chegamos pela manhã a Jacarepaguá para os treinos. Tinha um cara lá, Ayrton Senna, que faria sua primeira corrida. Claro que todos sabiam que o rapaz tinha futuro. Acompanhávamos a carreira dos brasileiros no exterior e naquele começo da década de 80 ele era o garoto que ganhava corridas na Europa. Mas Piquet já era bicampeão e todos os olhos se voltavam para sua Brabham-BMW linda de morrer.

Para quem queria ver Brasil-sil-sil naquele fim de semana, a prova de Jacarepaguá não foi das melhores. Ambos abandonaram, e Senna ficou já na nona volta com o turbo de seu Toleman quebrado. Ganhou Prost, a segunda de suas seis vitórias no país. Tocaram até o tema da Vitória para ele, já que a música era executada pela Globo apenas em GPs do Brasil. Não deixa de ser curioso lembrar deste momento…

Pouquíssimos carros chegaram ao final, eram tempos em que todo mundo quebrava, uma desgraça. Foram 16 abandonos, mais três desclassificações. Andando, sete ou oito carros apenas receberam a quadriculada debaixo de um sol de rachar mamão. É assim que se fala, sol de rachar mamão? Não, acho que é mamona. Não precisa de muito sol para rachar mamão. Enfim, um sol inclemente, um calor dos infernos.

Senna faria uma temporada interessante pela Toleman, tendo como ponto alto a já mais do que destrinchada corrida de Mônaco, o segundo lugar debaixo de chuva numa prova que ele tinha todas as condições de vencer, mas que foi interrompida por conta do temporal, com Prost somando metade dos pontos pela vitória. Quem também andou barbaridade naquele domingo monegasco foi Stefan Bellof, que para muita gente também poderia vencer se não fosse a interrupção. Mas foi Ayrton quem entrou para a história com aquela atuação, seu cartão de visitas para o mundo.

Rio, 1984. Já se vão 30 anos. Eu tinha 19, tenho 49. Senna morreu há quase 20, teria 54. 1984 foi o ano que George Orwell imaginou como aquele em que viveríamos vigiados por teletelas (o livro foi escrito em 1948, o autor apenas inverteu os últimos dois algarismos na intenção de mostrar que estávamos perto daquilo), conduzidos por governos totalitários num mundo dividido em três grandes continentes, Oceania, Lestásia e Eurásia, os três em guerra permanente, trocando de inimigos e aliados de tempos em tempos sob o comando do Partido e do Grande Irmão. Falaríamos a novilíngua, exerceríamos o duplipensar, seríamos punidos por nossas crimideias e correríamos o risco de nos tornarmos impessoas a qualquer escorregão que contrariasse as normas do IngSoc.

Orwell errou por uns 30 anos.

Subscribe
Notify of
guest

37 Comentários
Newest
Oldest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
gilberto v. de sousa
gilberto v. de sousa
9 anos atrás

TEMPO BOM QUE NÃO VOLTA MAIS,TENHO SAUDADES DO AUTODROMO DE JACARÉPAGUA,E DAS CORRIDAS DAQUELA EPOCA.NAQUELE TEMPO PARA CHEGAR NO AUTODROMO,DE JACARÉPAGUA,ERA UMA AVENTURA SAINDO DA RODOVIÁRIA NOVO RIO,DE ONIBUS,O PONTO FINAL ERA NOVA IPANEMA,E DALI TINHA QUE IR ATÉ AO AUTODROMO A PÉ,TINHA MUITO CONGESTIONAMENTO DE CARROS,E DIFICULTAVA A PASSAGEM DOS ONIBUS,MÁS NÃO TINHA PROBLEMA,QUANTO AO SACRIFICIO,VALIA A PENA,NÃO IMPORTA SE ESTAVA MUITO CALOR,OU CHUVA .

Pablo
Pablo
10 anos atrás

Quanto ao fato em si dos 30 anos da estreia de Senna na F1 não há muito a acrescentar mesmo, já que ele abandonou logo

Mas eu não sabia dessa de Mônaco em que o Stefan Bellof também poderia ter vencido a corrida se não fosse a chuva. Mais uma meia-verdade contada pela grande imprensa..

RENE FERNANDES
RENE FERNANDES
10 anos atrás

Existem dois filmes sobre o livro 1984. O último tinha o Richard Burton e e Willian Hurt. O primeiro era em preto e branco e lembro de ter assistido, quando era criança ( impactante para a época e minha idade). Procurei na Internet e não achei a menor referencia ao filme?!? Sumiu! Ninguém sabe, ninguém viu! Alguém se lembra dele?? Sabem de algum Site que fale sobre ele??? Era infinitamente superior ao último, mas parece que sumiram com o filme. A memoria mundial está, lentamente, sendo apagada e alterada…..Algum neto de Matuza pode me informar????

Kiko Prada
Kiko Prada
Reply to  RENE FERNANDES
10 anos atrás

Aqui esta o link para o IMDB (Internet Movie Database):
http://www.imdb.com/title/tt0048918/
E ouvindo Lizard do King Cromson, melhor ainda…
E só uma correção: John Hurt, não Willian Hurt.
Abraço.

RENE FERNANDES
RENE FERNANDES
Reply to  Kiko Prada
10 anos atrás

ISSO MESMO CARA!!!! FANTÁSTICO! já conhecia este site, mas por outros motivos. Digite Renê Fernandes na busca e verás três de meus trabalhos na televisão. Agora como eles descobriram isso, para mim é uma incógnita. E no Brasil eu não tenho nenhuma referência…País sem memória…Grato pela correção, errei o Hurt. Um abraço!

Junior
Junior
10 anos atrás

muito estranho o hino da vitória com o Prost.. kkkkkk

Luic Monteiro
10 anos atrás

“…muito mais pela farra do que por Senna e Piquet”. Devem ter sido bons tempos.

Aqui, aos que tiverem mais tempo e paciência, a íntegra do GP do Brasil de 84, transmissão da Globo pingada na internet: http://lucmonteiro.wordpress.com/2014/03/25/ha-30-anos/

Kleber Acquesta
Kleber Acquesta
10 anos atrás

Putz! Estou lendo esse livro 1984. É muito bom. Mas está difícil ler ele com tanto trabalho de faculdade pra fazer. Estudar depois de velho é dose, kkkkkkkkkk.

Esses carros de F1 eram o que havia de tecnologia na época. A F1 poderia ser mais aberta para novas invenções. Lembro que tinha carro com motores V-8, V-10 e V-12 correndo tudo junto. Suspensão ativa e esse monte de parafernália. F1 tem que ser tecnologia de ponta.

Roberto Valle
Roberto Valle
10 anos atrás

Flavio, estava lá na B também, ao lado de um camarada que tinha vindo de SP de moto (CB 400), levou um tombo ao estacionar, foi para o hospital, levou uns 30 pontos na perna e ainda assistiu a corrida.

Pedro Araújo
Pedro Araújo
10 anos atrás

30 anos de atraso, mas o resto tá realmente bem condizente com o mundo que o Orwell imaginou…

Alvaro Ferreira
Alvaro Ferreira
10 anos atrás

Eu tava lá na arquibancada descoberta, de boné e toalha nas costas prá me proteger do sol, o calor tava brabo!
Me lembro de admirar a bela corrida do Derek Warwick, de Renault, que só não ganhou porque quebrou a suspensão, quando faltavam poucas voltas. Merecia a vitória, teria sido a única na F1 de sua bela carreira.

Jaime
Jaime
10 anos atrás

E, quanto ao calor, aqui em Campinas costuma se dizer “sol de estourar mamona”.

Guilas
Guilas
10 anos atrás

Dois fatos impediriam as eventuais vitórias de Senna e Bellof, respectivamente: a prematura interrupção da prova; a desqualificação da Tyrrell em 84.

Zé Dirceu
Zé Dirceu
10 anos atrás

Automobilismo à parte, adoro esses seus textos.

Nesse em específico o que mais gostei foi do último parágrafo.

jose maria alves
10 anos atrás

ainda guardo o meu cartão.

Luciano M
10 anos atrás

Eu sou de São Caetano, Flavio. Nasci no bairro Santa Maria e moro atualmente na Vila Gerty.

RenatoS.
RenatoS.
10 anos atrás

Stefan Bellof, este era o cara!

nelson
nelson
10 anos atrás

Ótima corrida. Grande Piquet, grande Orwell !!!

Cleber
Cleber
10 anos atrás

Do grid de largada desta corrida, alguém contou o numero de “mortos em combate”?

César Lima
César Lima
Reply to  Cleber
10 anos atrás

Daquele grid já faleceram Senna, Bellof, Winkelhock, De Angelis e Alboreto, todos em provas ou testes no automobilismo.

vander
vander
10 anos atrás

Como era linda essa McLaren , totalmente diferente dessas aberrações de hoje.

William Gimenes
William Gimenes
10 anos atrás

Jacarepaguá se foi, e o Unibanco também…

Carlos D'Orazio
Carlos D'Orazio
10 anos atrás

Flávio, saiu uma matéria na uol sobre o primeiro companheiro de equipe do Senna na Fórmula 1. Que o Senna foi um puta piloto todos sabem, se foi ou não foi o melhor é uma questão pessoal de cada um. A grande polêmica que perdura é quanto ao ser caráter pessoal, você que o conheceu pessoalmente, o que pensa sobre isso?
http://esporte.uol.com.br/f1/ultimas-noticias/2014/03/25/primeiro-companheiro-de-senna-na-f1-revela-magoa-com-o-brasileiro.htm

JP
JP
Reply to  Carlos D'Orazio
10 anos atrás

Isso já está relatando no livro “Ayrton, o Herói Revelado”. Que aliás deixa claro o caráter competitivo e muitas vezes pouco amigo de Senna, sem desmerecê-lo.

Mauro Batera
Mauro Batera
10 anos atrás

Estive em Jacarepaguá nos GPs de 88 e 89, e também achei incrível o ingresso cartão magnético.

Tenho eles até hoje guardados como verdadeiros tesouros.

A F1 jamais deveria ter saído do Rio, nós sabemos os motivos, mas que era bom, ahhhh isso era, pois era aquele sol, calor, mulherada e aquela festa!

Nestes dois GPs, eu e meus amigos ficamos acampados no camping ao redor do autódromo, e como ambas as corridas foram em domingos de Páscoa, nós saímos daqui de Curitiba na 5ª feira cedo, e pudemos assistir os três dias de festa.

Em 88, na sexta ou no sábado, nós fomos jantar na churrascaria Porcão, e lá tivemos a sorte de nos depararmos com Alain Prost e Stefan Johansson, que jantavam e distribuíam autógrafos.

Bons Tempos!!!!

JP
JP
Reply to  Mauro Batera
10 anos atrás

Lá vem o bairrismo…

Hausensson
Hausensson
Reply to  Mauro Batera
10 anos atrás

Quem mandou não treinar a equipe de resgate…

Agora já perdeu, “Parceiro”!

Apache
Apache
Reply to  Mauro Batera
10 anos atrás

Que coincidência. Tb sou de Curitiba e fui com amigos. Ficamos em camping ali perto… Bons tempos

Thiago Azevedo
Thiago Azevedo
10 anos atrás

Gomov,

O fruto da mamona é seco (não tem polpa) e deiscente (se abre). A dispersão das sementes é mecânica (não são muitos que a comeriam, acho que só o senador Roberto Requião – http://www.youtube.com/watch?v=uR1i-w9QUEA ). O fruto vai secando e quando as sementes estão maduras ele se rompe e as lança. A ideia é que vá o mais longe possível da planta parental. Geralmente esse lançamento ocorre em períodos mais quente, quando as mamonas secam mais e “racham”.
Deve ser rachar mamona mesmo.

Sandro Loureiro
Sandro Loureiro
10 anos atrás

PelamordeDeus Flavinho, me desbloqueia lá no twitter (@sandroloureiro). Não sei porque fui bloqueado…Sou muito seu fã…Talvez tenhas me confundido com alguém, sei lá…

Paulo Pinto
Paulo Pinto
Reply to  Sandro Loureiro
10 anos atrás

Pára de implorar, cara. Isso é ridículo!

Paulo Pinto
Paulo Pinto
10 anos atrás

“O Grande Irmão zela por você” transformou-se em “Sorria! Você está sendo filmado”.

Luciano M
Reply to  Paulo Pinto
10 anos atrás

Ou então algo do tipo “Big Brother Brasil, vamos dar uma espiadinha…” =)

Paulo Pinto
Paulo Pinto
Reply to  Luciano M
10 anos atrás

Esse programa banaliza o tema, mas é uma amostra do que seria a casa do cidadão debaixo de um controle totalitário.

Fernando
Fernando
10 anos atrás

10 temporadas, 3 títulos conquistados, até que era bom esse tal de Senna…

JONAS
JONAS
Reply to  A.Vandelay
10 anos atrás

Muito boa essa comparação Huxley x Orwell!!
Os dois tinham razão, já vivemos esse mundo.