
SÃO PAULO (azar deles) – Às vezes — vejam bem, às vezes, muito raramente mesmo –, o Reginaldo Leme me ligava às sextas-feiras. Flavinho, em que ano mesmo aconteceu não sei o quê? Gomes, tô em Paúba sem internet, fulano renovou mesmo com a McLaren?
Sexta-feira, desde 1991, era o dia em que o Regi escrevia sua coluna para o “Estadão”. Publicação aos sábados — pode ser que nesse tempo todo o dia da semana tenha variado uma ou duas vezes, não vou lembrar. Sábado era meio o Dia Universal da Publicação de Colunas de Automobilismo. A minha “Warm Up”, na “Folha”, saía aos sábados, também. Depois outros assumiram o espaço, como o José Henrique Mariante (por onde anda o “Zé da Tele”, aquele de 1992?) e o Fábio Seixas.
Dia desses, não vou saber precisar quando, a coluna do Seixas deixou de ser publicada no jornal impresso. Migrou, como gostam de dizer os chefes, para o “on-line”. Não sei se tem hífen esse negócio. Online. Onlline. Sei lá. Nunca mais li. É um equívoco, claro, porque o cara é meu amigo, escreve bem e me interesso pelo que tem a dizer. Mas eu lia no papel, tomando o café da manhã. Quando lembro que está na internet, não sei como procurar e já não estou tomando café da manhã.
Eu mesmo deixei de ser publicado no impresso faz anos, nos jornais para quem escrevia. Creio que minha meia-dúzia de leitores deve ter ficado irritada, também, mas paciência. Eram jornais pequenos, a minha rede impressa começou com mais de 50 e no fim tinha quatro ou cinco, e alguns desses fecharam. Eu já estava firme na internet, porém. Bem ou mal, as pessoas sabiam onde me ler — este blog completou dez anos no começo do mês, hoje é aqui que sou lido, ponto, parágrafo.
Cheguei de minha semana de férias e ao abrir os e-mails chega a mensagem do Regi. Sexta-feira, dia 26, ele escreveu sua última coluna para o “Estadão”. Três dias antes, foi comunicado pela direção do jornal de que ela não faria mais parte do caderno de Esportes. Ao que parece, não vai migrar para lugar algum.
Regi não é amigo, nem inimigo da internet. Apenas não dá muita bola, porque a TV já lhe toma bastante tempo, assim como o anuário “AutoMotor Esporte” e, principalmente, a vida. De vez em quando pinga uma coisinha no Twitter. No Facebook, não sei se está. Acho que não. Nossos contatos se dão pessoalmente ou por telefone, têm sido raros, por circunstâncias, mas não é na internet que vou procurar o Regi. Era no jornal.
Era.
Não sei se ele vai continuar escrevendo. Talvez não, porque não existe mais a obrigação de comparecer à casa de sei lá quantos mil leitores todos os sábados. Se esses leitores quiserem reclamar com alguém, que seja com o jornal, não com ele — que devia ganhar uma miséria para publicar seus textos semanalmente, e tenham certeza de que não serão esses cobres que irão salvar o “Estadão” da iminente falência. Digo isso, da falência, porque um jornal começa a morrer quando fica ruim, e a cada dia que passa eles ficam piores. O “Estadão” é um desses casos, que tem cada vez menos leitores e não consegue seduzir os jovens a lê-lo. É questão de tempo. Aquele enorme prédio da Marginal é uma tumba do jornalismo, custoso, exagerado, erguido em outra era e financiado por listas telefônicas, que não justifica mais o que lá se produz.
Nunca fui fã do “Estadão”, por ser um histórico representante da direita hidrófoba e pela caretice de suas posições. Mas respeitava o jornal, era nosso maior concorrente na “Folha” e, gostássemos ou não, quase sempre teve equipes competentes capazes de produzir um jornalismo de qualidade, linha editorial à parte. Nos últimos anos, no entanto, o nível despencou, dezenas de jornalistas de primeiríssimo time foram demitidos, e vi isso bem de perto porque de 2007 a 2013 convivi com a decadência de sua rádio, também, que hoje está à venda — a velha Eldorado, no AM, parece que foi arrendada para alguma igreja e a Estadão, que assumiu a frequência no FM, mandou todo mundo embora e está apenas esperando uma boa oferta para entregar o prefixo.
Bom, acabou a coluna do Reginaldo Leme no “Estadão”. O último texto está aí embaixo, porque o Regi mandou para mim e mais alguns amigos. Ficou chateado. “A grana não representa nada – uma Ferrari por ano, mas usada. Só que foi meio doído. Como tudo nessa idade, hehehe!”, escreveu. A graça cabe. O maior jornalista de automobilismo do Brasil não precisa de coluna alguma faz tempo, escrever era quase um favor para um jornal agonizante. Afinal, foi lá, nos anos 60, que o Reginaldo começou sua carreira, como setorista do Palmeiras. É doloroso parar porque ser publicado naquelas páginas, mais de 40 anos depois, representava um elo com o passado, dava uma sensação de continuidade.
Rupturas, sejam quais forem, deixam um certo amargor na boca. Não sei qual será a reação dos leitores do jornal. É possível que modesta, é certo que inútil. Os grandes gênios de gestão corporativa — alguns comandam o “Estadão” hoje, tentando salvá-lo com gordos salários, e tudo que têm conseguido é acelerar sua morte — não voltam atrás nessas questões.
Azar deles, azar dos leitores. Respondi ao Regi que se ele quiser escrever no Grande Prêmio, o espaço é dele. Mas alguns anos atrás, quando reproduzíamos sua coluna aqui, uma treta qualquer com a Globo acabou fazendo com que não pudesse mais ser publicada.
Na verdade, acho que nem deve. Acabou, acabou. Não faz sentido reeditar aquele “sofrimento” semanal (sim, o Regi é o maior barato, com 40 anos de janela ainda se comporta como um menino em início de carreira, angustiado, preocupado com cada palavra, com cada vírgula, e é por isso que seus textos são tão bons, porque sofridos), dane-se, vira a página, fecha o livro.
Aí está a última coluna. “Tchau!” foi o tíitulo. Nós, aqui, seus fãs e admiradores, dizemos “oi”. Use as sextas para um chopinho e chame os amigos, Regi.
Meus amigos, costumo escrever a última coluna do ano fazendo um resumo do que passou, uma perspectiva do que pode vir na F-1 e esporte a motor em geral, e me despedindo de vocês para um mês de descanso das viagens, estúdios, satélites, redações, ou seja, o descanso é mesmo da tensão que acompanha o jornalista minuto a minuto. Desta vez é um pouco diferente. É a própria coluna que está se despedindo. Depois de 25 anos, ela está sendo publicada pela última vez. Se eu somar os dez anos de meu início de carreira como repórter no Estadão a esses 25 de coluna, dá três décadas e meia. É um belo período de tempo em que nos correspondemos através das páginas deste jornal onde comecei a minha vida profissional e, posteriormente, retomei a caminhada como colunista, desta vez paralelamente à da TV Globo.
Não dá para esquecer o começo da coluna. Estava chegando a semana de um GP de Mônaco. Havia acabado de assumir a editoria de esportes do Estadão o velho amigo Guilherme Cunha Pinto, que havia sido integrante do grupo de jornalistas de grande talento que criaram o Jornal da Tarde. Um dos textos mais brilhantes do nosso jornalismo, ele se tornou referência para minha geração, embora fosse o mais novo daquele grupo (por isso mesmo, chamado de Jovem Gui). Fazia menos de dez anos que eu havia deixado o Estadão para trabalhar na Globo, e a Fórmula 1 atravessava aqueles anos de ouro que só o Brasil teve (oito títulos mundiais em 22 anos, quando a Alemanha ainda nem sabia vencer corrida). O Gui me propôs começar uma coluna semanal e, claro, naquela mesma semana já escrevi a primeira, dia 10 de maio de 1991, contando o que o GP de Mônaco representava para a F-1, apesar da incoerência de se correr naquelas ruas apertadas com um carro que já representava o máximo de sofisticação mecânica que se poderia alcançar. A esta sofisticação mecânica, hoje se soma a elétrica e a eletrônica.
Dali em diante, foram aproximadamente 1.300 colunas, o que já me levou a pensar em escolher 100 para editar um livro. E se der certo o livro, ainda sobra material para alguns outros. A coluna não viveu a era Emerson, mas eu vivi e, muitas vezes, contei passagens desses tempos. Na época em que a coluna nasceu, quem estava no auge era Ayrton Senna. E Nelson Piquet, no último ano de carreira. Encerrava-se o período da geração mais talentosa da história da F-1, em que despontavam Piquet, Prost, Mansell e Senna. Portanto, entre quatro gênios, dois brasileiros. Por mais que tenhamos novas gerações em formação, jamais voltaremos a ter esse privilégio. Este quarteto conquistou onze títulos, e deve-se levar em conta que ser campeão apenas uma vez é pouco para o talento de Mansell. Prost tem quatro; Piquet e Senna, três cada um.
Depois disso ainda tivemos outros dois vencedores de GPs (Barrichello, 11 vezes e Massa, também 11), o mundo continua acreditando e esperando muito do talento natural do brasileiro. O primeiro a alcançar a F-1 foi Felipe Nasr, que este ano conseguiu ser o melhor estreante entre os 31 brasileiros a pilotar um F-1 (5º lugar na Austrália). Há uma nova geração a caminho. Como um bom capricorniano, mantendo o pé no chão, acredito em novos vencedores. Como sempre me disse Nelson Piquet, o primeiro objetivo de um piloto é alcançar a Fórmula 1. Quando consegue isso, ele tem que lutar para obter a primeira vitória. Pensar em título é uma fase que vem bem depois dessas. O talento, por maior que seja, pode não bastar. E é isso o que torna o automobilismo a carreira mais difícil de um atleta. Cada vez mais o piloto vai depender não apenas dele, mas do conjunto mecânico-elétrico-eletrônico.
O nosso sucesso no automobilismo vai continuar. A F-1 ainda é uma paixão do brasileiro. E eu sigo nesse barco. Vi tantos chegarem ao topo, outros ficarem pelo caminho apesar do talento, e ainda tenho muito a ver. Estava pensando em como me despedir de vocês, e acabei encontrando no diálogo com dois jovens companheiros, Glauco de Pierri e Raphael Ramos, que aguardavam a coluna na Redação. Disse a eles o que queria dizer a toda a nova geração: “Acreditem no bom jornalismo, ele preenche nossas vidas”. Estão vendo como é a vida? Desta vez foram dois jovens me mostrando um caminho. Então, vamos ampliar este pensamento também aos leitores: “Amigos, vale a pena acreditar no bom jornalismo”. Tchau!
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