DI LALLO

FSÃO PAULO – Di Lallo,

Escrevo com lágrimas nos olhos. Sei que você vai ler. Digo, sei que se um dia eu dissesse que iria escrever uma carta quando você morresse, você diria que sim, iria ler, claro. Você acreditava nisso, e as coisas são exatamente como acreditamos.

Um dia você me falou do Facebook. É lá que centenas de pessoas estão escrevendo para você. Notei que quase todo mundo escreve diretamente para você. Acho que todos sabem que você vai ler.

Que seja assim, brother, que seja assim.

Quando você me apresentou o Facebook, numa daquelas noites de quarta-feira no estúdio da rádio no Limão, naquele prédio que eu chamava de mausoléu do jornalismo, disse que era o futuro.

Era.

Antes, me apresentou o Twitter. É o futuro, disse.

Era.

Você parecia ter o dom de saber exatamente o que estava para acontecer, do que seria o futuro. Você sabia, por exemplo, que eu sempre chegaria.

Eu, o apresentador que sempre chegava em cima da hora. Estacionava o carro, a trilha de abertura já estava no ar. Lá em cima, no mezanino do mausoléu, desespero por todos os lados. Menos você, que quando eu apontava no corredor e acendia a luz vermelha “no ar”, dizia. Viu? Ele sempre chega.

Nunca te vi nervoso, nunca te vi levantar a voz, nunca te vi angustiado nem nos piores momentos da doença do seu pai, nem nos piores momentos do nosso projeto, aliás, do seu projeto de rádio que foi a coisa mais linda que vi e de que participei.

Não te conhecia, Di Lallo, até começarmos aquela maluquice em 2007. Eu era o quarto âncora, reserva do reserva reserva, mas por falta de interesse dos outros, ou talvez de disposição em tirar a cara do vídeo para botar a voz no microfone, acabei virando o titular. E você, coordenador daquilo tudo ao lado do Silvio Valente, ficava do lado de cá do vidro comigo, e ele do lado de lá com o Bruno Rota na mesa e a Cleide Castro na produção.

Esse foi o time que começou jogando, dou os nomes, normalmente esqueço todos eles, porque guardo com carinho esses pontapés iniciais da vida, e damos tantos pontapés iniciais na vida…

O âncora e o plantão. Os nomes foram se sucedendo, os times foram mudando, mas o âncora e o plantão foram ficando. Quarta e quinta, sábado e domingo. Das sete da noite às duas da manhã durante a semana, do meio-dia à meia-noite de fim de semana, e nessas centenas de jornadas falando de futebol, passamos milhares de horas falando da vida.

Nesses anos todos, e foram muitos, admirei em silêncio sua seriedade, sua competência, sua honestidade, seus princípios, seu profissionalismo, seu empenho, sua dedicação, sua cultura musical, sua visão de mundo, sua voz segura, sua precisão, seu carinho pelo ofício, sua paixão pelo rádio.

O rádio.

O rádio era nossa vida, nosso habitat. O microfone, nossa maior arma. Éramos bons. Todos nós. A cada jornada, eu via nos seus olhos o orgulho de ver funcionando tão bem aquilo que você montou com tanto critério, sabedoria e conhecimento de causa, a preocupação com os detalhes, com o bem-estar de cada um, repórteres, narradores, comentaristas.

Você era, acima de tudo, um cara justo. E, por isso mesmo, respeitado.

Depois do último boa-noite aos ouvintes, já alta madrugada, descíamos por aquelas escadas soturnas e mal iluminadas do edifício enorme na Marginal, chegávamos ao estacionamento e antes de ir embora fumávamos um cigarro tendo como fundo sonoro o zumbido das rotativas do jornal decadente. Até amanhã, brother, você sempre chamava os amigos de brother, e então entrava cada um no seu carro, e eu voltava para casa pelas ruas vazias e silenciosas cansado, claro, mal alimentado, claro, porque só comíamos pizza e sanduíches e esfihas, mas com a sensação de ter feito as coisas direito porque, quando terminávamos, eu via nos seus olhos que tinha dado tudo certo.

Depois de um tempo você sabia que não iria durar muito, as coisas estavam mudando no Sumaré, você sabia exatamente quando e como acabaria, mas nunca ouvi de sua boca uma única palavra de raiva, ou mágoa de ninguém. No máximo, tristeza. E lealdade até o fim. Às pessoas e ao seu projeto de vida.

Estou escrevendo agora porque sei que você vai ler. Sei que você acreditaria que iria ler, então é porque vai ler.

Um dia, acabou. Primeiro pra você, depois pra mim.

Ano passado eu errei o dia do seu aniversário. Fui para o pub no dia errado, uma semana antes, grande vexame, você riu.

Neste ano, fomos no dia certo e vimos o melhor cover de Pink Floyd de todos os tempos, a Marília te adorou, adorou a noite, as comidas, a bebida, a música, os novos amigos.

Valeu, brother, você falou quando íamos embora.

Não te vi mais, não vou te ver mais, mas se você estiver lendo, e está, vai me dizer, sorrindo, que é claro que vou te ver de novo, então, sendo assim, brother, é claro que vou.

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Zé Alonso Muchon
Zé Alonso Muchon
7 anos atrás

Transmitir a amizade através de um texto é para poucos. Sentimentos à família e aos amigos.

Antonio Seabra
Antonio Seabra
7 anos atrás

Texto maravilhoso, irretocavel.
Perfeito requiem para um amigo de verdade.

É nesses momentos que nós, que te acompanhamos aqui, aprendemos que, além de escrever muito, voce é um enorme sentimental.

Meus respeitos pela perda do “brother”.
Meu reconhecimento pela tua incrivel capacidade de expressar sentimentos fortes.

Antonio

Ney Dias
7 anos atrás

Só tenho duas palavras pra te escrever. Lindo!! To engasgadão! Nó na garganta! Lindo!

BTW: foram mais palavras. Sorry!
Lindo!

Anselmo Coyote
Anselmo Coyote
7 anos atrás

Ok. Posts novos na área, voltei aqui p/falar o óbvio.
Tbm já sofri umas perdas assim. Não acostumo com isso. Nunca. E sofro. O mais recente foi meu amigo Renato, 54 anos, kartista nato, descobriu esse talento aos 50. Uma perda daquelas de doer, e doer muito.
Só queria lhe dizer que tbm prezo meus amigos assim, como vc, acho. E por isso sou-lhe solidário.
Abs.

Mauro Sousa
Mauro Sousa
7 anos atrás

Meus sentimentos à você Flavio e aos familiares do Di Lallo… Esse mundo ta cada vez mais chato…

charles
charles
Reply to  Mauro Sousa
7 anos atrás

Não entendi a expressão “Esse mundo ta cada vez mais chato…”, entendo que referida expressão seja usada quando, por exemplo, os ecochatos protestam contra o uso de veículos movidos à combustível fóssil, ou que tudo é motivo de discriminação e preconceito, etc.
Nesse caso, lamentável por sinal, a morte desde sempre existiu.

Durvaldisko
Durvaldisko
7 anos atrás

Flávio, com certeza, pode se considerar como um do melhores de sua geração.. Desde o inesquecível, “Veloz HP e seus sedan branco”, seus textos emocionam,profundamente. Abraço solidário.

Vinícius
Vinícius
7 anos atrás

que texto, linda homenagem…
meus sentimentos a você e a família…

Antonio Carlos Michelin
Antonio Carlos Michelin
7 anos atrás

Foda perder um amigo desse calibre. Sinto muito.

Fabricio
Fabricio
7 anos atrás

Uma verdadeira declaração de amor a um amigo…. solidarizo-me com você e a família…

René G Barreto
René G Barreto
7 anos atrás

buenas, muito phoda o que vc escreveu e como escreveu…… muito phoda………

Marcelo
Marcelo
7 anos atrás

Sensacional o texto, e Brother era mesmo uma das palavras preferidas dele.

JT
JT
7 anos atrás

Muito triste. É muito comum que homens de meia idade sofram ataques cardíacos logo de manhã, praticando esportes ou fazendo simples caminhadas.
As pessoas acham que estão seguras de tal modo, fazendo o que julgam ser algo saudável. É saudável sim, mas para pessoas que não tem problemas circulatórios e hipertensão (a maioria das pessoas que sofrem disso não sabem, pois os sintomas, quando aparecem, são graves).
Estamos, todos nós, sendo vítimas bovinas de uma péssima alimentação, carregada de sódio em demasia que, entre outros males, enrijece as artérias. O exercício físico em excesso, neste caso, é só um agravante.
Lamento pelos amigos e familiares.

Rodrigo Tossato
Rodrigo Tossato
7 anos atrás

Meus sentimentos a você e a Família…duro perder alguém que gostamos muito…

Alexandre
Alexandre
7 anos atrás

Lindo texto! Flávio, você se lembra do nome dessa banda cover? Obrigado.

Mauro
Mauro
7 anos atrás

Grande Flávio, eu também fiquei com lágrimas nos olhos.

Abraço

felipe
felipe
7 anos atrás

Parabéns pelas palavras.

Você é foda!!

Que ele fique em paz.

fernando
fernando
7 anos atrás

Prezado FG,
sensacional o texto, creio que, quando perdi meu pai, se eu tivesse sua capacidade de escrita, o texto para ele seria mais ou menos assim…sinceramente, meus sentimentos e espero que voce tenha tido a oportunidade de falar, ou mostrar, tudo isso que escreveu a ele, enquanto era vivo…infelizmente, nao tive essa chance com meu velho, pelo menos nao para tudo que gostaria de ter dito.
abracos

Gabriel Cunha
Gabriel Cunha
7 anos atrás

Momentos. Só eles para fazer as coisas terem sentido. Perceber a grandeza de cada um, mesmo quando na hora não parecem nada. Mesmo quando na hora o que salta seja fumaça e cansaço.
Texto lindo.

Anselmo Coyote
Anselmo Coyote
7 anos atrás

Muito novo. A vida, as coisas…

Roger
Roger
7 anos atrás

Não somos corpos com alma, somos almas em corpos (minha verdade, claro). Somos imortais. Sim, você vai reencontrá-lo, mas pelo que percebo, em seu íntimo, sempre soube desta eternidade.
Por amor, afinidade, respeito e amizade, claro que vão. Não o conheci, mas, por amizade tão bacana, quando revê-lo, dê um abraço por mim. Deve ser um grande cara.
Um abraço para você também.

Luiz (o outro)
Luiz (o outro)
7 anos atrás

Pqp, é foda perder pessoas legais assim… e vc escreve bem pra kct!

MARCO ALBERTO DOS SANTOS GAVIOLI
MARCO ALBERTO DOS SANTOS GAVIOLI
7 anos atrás

Muito bonito o texto, linda homenagem ao seu brother.

Harry
Harry
7 anos atrás

Maravilhoso!

Rodrigo Mattar
Rodrigo Mattar
7 anos atrás

Mais um texto foda, FG.

Cada vez mais, a certeza de que os bons estão realmente indo embora.

Uma pena. Ficamos órfãos de pessoas assim. Um amigo dos amigos. Nunca conheci, mas considero pacas, pelo que todos vocês falavam tão bem dele.

Pena.

Rodrigo Herrero
Rodrigo Herrero
7 anos atrás

Uma coisa que esqueci de falar e senti vontade de voltar aqui é que acompanho o Di Lallo desde a Gazeta, quando tinha uns 13, 14 anos. Ali formou-se muita gente, Mauro Beting, Osmar Garrafa, José Diniz Neto e muita gente que não lembro o nome… Até a Regiane Ritter, que hoje orienta meu sobrinho que estagia na rádio Gazeta AM (mundo pequeno). Depois o Di Lallo sumiu pra mim e voltei a ouvi-lo na época da Eldorado/Estadão/ESPN, um último período dourado do rádio esportivo, pois a emissora era fantástica, tinha programas maravilhosos, F-1 maravilhosa com o Flavio e o Everaldo (outro cara fenomenal do rádio/tv), narrações ótimas e pós-jogos que não acabavam nunca, sempre com a dobradinha gostosa do Flavio com o Di Lallo. Eram momentos muito gostosos de ouvir e acompanhar, amplamente superiores aos merchans intermináveis da concorrência ou do fim abrupto da transmissão de outra emissora… Flavio e Di Lallo não. Eles destrinchavam os jogos até todos ficarem satisfeitos, como deve ser. Rádio é isso. Hoje em dia acaba o jogo, pega-se a coletiva de cada técnico, mais a saída dos atletas, um comentário e, em meia hora no máximo, fim da transmissão. Hoje as pessoas leem na internet a hora que querem, veem os gols na hora, debatem entre si, criam programas próprios, não há tal costume de ficar ouvindo o que o cara tinha a dizer na alta madrugada… Ouvi muito o Zaidan na Bandeirantes falando sobre futebol e aquilo era animal. Hoje acabou… Tanto que as TVs por assinatura, em especial o Sportv, pegaram a ideia e faz pré-jogos de uma hora, lembrando os tempos áureos do rádio, em que eu ouvia o repórter no hotel falando com dirigentes e atletas antes de uma final… E depois do jogo tem comentaristas analisando e repórteres nas coletivas… Enfim, o futebol, o jornalismo, o rádio e a cobertura esportiva mudaram muito e a ESPN, com Flavio Gomes e Marcelo Di Lallo foi meu último elo perdido de um radialismo atuante, emocionante e influente, enfim, parceiro do ouvinte. Depois do fim da emissora continuei seguindo o Di Lallo pelas redes sociais. Vou sentir falta das fotos de paisagens lindas e das mensagens positivas. Mas principalmente da dobradinha contigo, Flavio, nas noites e madrugadas de futebol. Já sentia. Uma pena que agora não tem mais jeito disso voltar a existir… Obrigado pelos bons (e maus) momentos vividos com meu time e com o radinho colado no ouvido. Mutia luz pro Di Lallo e força pra nós que seguimos na luta. Grande abraço.

Rodrigo Herrero
Rodrigo Herrero
7 anos atrás

Muito bonito, Flavio. E triste. Vai em paz, Di Lallo… Que tenhamos força para seguir em frente… Abraços.

Heber
Heber
7 anos atrás

Texto lindo Flávio, emocionante de se ler.