MOTOLAND

ITACARÉ (precisamos de uma Pop, alguém tem pra vender?) – Um rapaz me escreveu hoje porque viu minha moto DKW no YouTube e queria saber onde eu comprei o carburador dela. Aliás, é o vídeo mais visto do meu canal, e nunca entendi bem por quê. Nele, falo da odisseia para encontrá-lo. Ele queria saber o nome da loja, e mesmo sabendo que ela já fechou fui procurar nos meus arquivos par, pelo menos, lembrar o nome. Acabei encontrando neste texto abaixo, de 2007. É tão bonitinho que resolvi republicar. Espero que gostem!

***

Dia desses li no blog de um jornalista amigo meu, Fábio Seixas, da “Folha de S.Paulo”, uma deliciosa história sobre o dia em que seu Gordini quebrou numa avenida movimentada de São Paulo. No fim o problema era na tampa do distribuidor, e o episódio todo o levou a descobrir uma lojinha no centro de São Paulo onde o tempo parece ter parado. E a lojinha tinha a peça. Nova, na caixa, guardada havia 40 anos.

O caso me fez lembrar de história parecida, logo depois de eu comprar minha moto DKW, que foi entregue numa caixa de madeira na casa de meu amigo Luiz Salomão, porque comprei escondido de minha mulher. Como ela não tinha documentos em dia, um outro amigo, que trabalhava num jornal da cidade de onde ela veio, no norte do Paraná, mandou a bichinha de caminhão acompanhada de uma nota fiscal de “peças de rotativa”, para o caso de uma fiscalização indesejada…

Quando ela chegou, fizemos funcionar e tal. Mas a coitada estava com um carburador fajuto, acho que de uma Suzuki 80 cc ou coisa do gênero. Não sossegaria enquanto não encontrasse um original, e depois de muito pesquisar descobri que ela usava, em 1936, um Dell’Orto assim & assado.

Procurei, procurei, até encontrar loja semelhante à do Fábio, lá mesmo no centro da cidade, numa travessa da avenida São João. Brasimport, o nome da loja. Fui com uma amiga, que não acreditava naquela estranha obsessão por um carburador. Eu falava dele como se fosse o Santo Graal.

A loja tinha armários de madeira de cima a baixo, como aqueles de antigas farmácias, piso de linóleo, duas ou três luminárias lá no alto, um mezanino de onde saía a luz azulada de uma TV em branco e preto. Como na loja do Seixas, computadores e máquinas para passar cartões não faziam parte do cenário, nem da realidade daquele ambiente estranhamente silencioso, apesar do barulho lá fora, Minhocão à vista, ônibus passando, motoqueiros alucinados entregando suas entregas, tudo rápido, ruidoso, urgente. Menos na loja.

Me atende um senhor que imagino ter sido o único vendedor daquele estabelecimento em todos os tempos. Meio envergonhado, porque às vezes fico com vergonha das minhas maluquices, inicio o diálogo timidamente. “Preciso de um carburador para minha moto”, digo. Eu sabia que ele perguntaria qual era a moto, é claro, e já me preparava para ouvir um “isso não existe mais”, ou “nunca ouvi falar”.

Ele perguntou, como eu previa, e respondi. “Uma DKW 1936.” O vendedor ajeitou os óculos, fez cara de quem vendia dez carburadores para motos DKW 1936 por dia, e sugeriu que eu fosse um pouco mais específico. “Cilindrada?”, perguntou, algo impaciente, e eu: “Duzentos e cinquenta”.

Um momentinho, falou, como se fosse aquele o pedido mais normal do mundo. Dirigiu-se a uma gaveta onde estavam guardados, há dois mil anos, catálogos de todas as fábricas de carburadores do universo conhecido. Ainda de costas, e antes de abrir a gaveta, perguntou: “Sport?”.

Sim, era uma 250 cc Sport. Como é que aquele cara sabia que em 1936 havia um modelo de moto DKW Sport?

Ele sabia. Pegou o primeiro catálogo, colocou sobre o balcão, folheou, fez ar de contrariedade, olhou a contracapa e reclamou consigo mesmo. “Este catálogo aqui é muito novo, não vou achar nunca”, censurou-se. Tinha sido impresso em 1954. Voltou com outro, esboçou algo que poderia ser chamado de sorriso, foi direto na página dos Dell’Orto, apontou o dedo e, feliz por ter encontrado o que procurava, decretou, sem demonstrar surpresa ou glória pela descoberta: “É esse aqui”.

Que bom. Pelo menos achamos o carburador para a DKW 1936 250 cc Sport, o que não era garantia de nada, porque a chance de haver um daqueles naquela loja, por mais otimista que eu fosse, era mínima. “Tem?”, perguntei quase implorando, já me desculpando por remover tamanho cadáver de sua memória.

“Claro. O senhor quer novo ou usado?”, ele respondeu, um tanto ofendido pela impertinência de minha dúvida.

Comprei o novo. Paguei uma grana, mas comprei o novo. Um Dell’Orto original para a DKW 1936 250 cc Sport.

São Paulo tem dessas coisas. Não sei até quando, mas ainda tem, e é o que me faz dormir tranquilo todas as noites.

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Luiz (o outro)
Luiz (o outro)
2 anos atrás

Acompanho seu blog há muito anos, nem me lembro desde quando… infelizmente tenho sido menos assíduo por fatores diversos… mas esse blog não pode acabar nunca! O modo como descreve os detalhes é incrível!

Alexandre Hoelz
Alexandre Hoelz
2 anos atrás

Texto delicioso! É por isso que passo aqui de vez em quando…

Marcelo Druck
Marcelo Druck
2 anos atrás

Infelizmente a loja já fechou. O senhor era o dono e já faleceu. Lá haviam peças de Vespa de estoque antigo, impossíveis de achar em qualquer lugar.

Jorge Luis
Jorge Luis
2 anos atrás

Historia incrível e texto maravilhoso.
Me senti ao seu lado dentro da loja …
Parabéns !!!

Edson
Edson
2 anos atrás

Hoje vc encontra essas coisas no mercado livre

Marcos Bassi
Marcos Bassi
2 anos atrás

Deveria projetar mais um livro sobre essas experiências inexplicáveis, em São Paulo ou qualquer outro lugar. Essas experiências são saborosas demais de ler…

Zé Amorozo
Zé Amorozo
2 anos atrás

Puta história, arrepiou

Paulo F.
Paulo F.
2 anos atrás

Pior que quando achei os anéis originais da minha Monaretti 61 . Isso em 1976. Em uma lojinha perdida no Ipiranga! Em um sábado à tarde!
Valeu Flávio!

Eduardo
Eduardo
2 anos atrás

Flavinho, que texto!

Comento pouco, mas sempre estou aqui lendo seus textos fantásticos.

Roberto Borges
Roberto Borges
2 anos atrás

Sensacional a história e o texto!
Também acho São Paulo o máximo, por conta de coisas como essa. Poucos lugares no mundo têm essa multiplicidade de ofertas e oportunidades.

João Henrique Leme
João Henrique Leme
2 anos atrás

Eu me lembrava do vídeo. Obrigado por trazer o texto de volta, Flavio. É ótimo!

Cléber Fabbri
Cléber Fabbri
2 anos atrás

Uau! Por isso amo este blog.

Fernando Guzzo
Fernando Guzzo
2 anos atrás

Flávio, essa história me lembra muito a própria história do posto de minha família. Numa parte fechada hoje do mesmo havia uma auto peças na década de 60. Peças, catálogos, prateleiras, tudo ainda está lá. Aliás o posto é um túnel do tempo, resistindo ainda não sabe-se como. Sua história também me lembrou de uma antiga loja na General Osório, que no balcão tinha um cartaz com os dizeres: “Pegunte, perigas ter”. Um abraço.

Roberto Hackmann
Roberto Hackmann
2 anos atrás

Bom dia Flávio , adoro estas histórias, também fico feliz sempre que encontro uma peça original para meus antigos , recentemente comprei um Monza Venezuelano que precisava de um carinho e encontrei todas suas peças mecânicas na Accioly na Barão de Limeira …
Tá bom Monza não é tão antigo , mas nesta mesma loja encontrei anos atrás um carburador para meu Ford 34.
É uma satisfação, repito, encontrar peças originais para nossos antigos .
Ah , leio seu blog desde seu primeiro dia e fico triste quando vc diz em suas lives que ninguém le …
Diminuiu !? Sim , mas muitos ainda o leem e curtem , então não nos chame de ninguém .
Abraço !

luiz Bandeira
luiz Bandeira
2 anos atrás

bacana a história, São Paulo é realmente uma cidade incrivel.

Markonikov
Markonikov
2 anos atrás

O Centro de SP é uma fenda no espaço-tempo ….

Kiko
Kiko
2 anos atrás

Texto delicioso de se ler, e ler de novo mesmo depois de alguns anos, parabéns e obrigado.

Marcos Alvarenga alvarenga.marcos@gmail.com
Marcos Alvarenga [email protected]
2 anos atrás

Será que dia Paulo ainda tem dessas coisas?
14 anos depois. E não são quaisquer 14 anos. Coisa demais mudando nesses últimos tempos, receio que para pior.

Roderico
Roderico
2 anos atrás

Que história deliciosa, Flavinho! Por favor, nunca deixe este blog morrer.