Blog do Flavio Gomes
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PRF-3

SÃO PAULO (fria é a noite, quente é a pizza) – Quando eu era pequeno, TV era assim: vai passar hoje no 13. Ou no 5. Ou no 4. Não tínhamos muita opção: eram 2 (Cultura), 4 (Tupi), 5 (Globo), 7 (Record), 9 (Excelsior), 11 (Gazeta) e 13 (Bandeirantes). Quando eu era pequeno e me […]

SÃO PAULO (fria é a noite, quente é a pizza) – Quando eu era pequeno, TV era assim: vai passar hoje no 13. Ou no 5. Ou no 4. Não tínhamos muita opção: eram 2 (Cultura), 4 (Tupi), 5 (Globo), 7 (Record), 9 (Excelsior), 11 (Gazeta) e 13 (Bandeirantes).

Quando eu era pequeno e me mudei para o Rio, meu maior problema foi entender por que lá a Globo era 4, e não a Tupi, e por que a Tupi era 6, e em São Paulo 6 não era nada. Era tudo diferente. Os canais do Rio não eram os canais de São Paulo. Como é que um país poderia dar certo desse jeito?

Não entendia muitas coisas, e algumas não entendo até hoje. Os prefixos das TVs e rádios, por exemplo. O hábito já não existe mais, mas antigamente as TVs abriam ou fechavam suas programações dando o prefixo. A Tupi era PRF-3. Um mistério, assim como misteriosos são os prefixos dos aviões.

Mas é melhor que certos mistérios persistam.

Hoje trabalho na TV. E já contei que costumo ver fantasmas e lidar muito bem com eles. Como numa curva inclinada abandonada em Monza, ou numa arquibancada esquecida em Avus, ou nas ruínas de uma fábrica de onde saiu um carro meu.

Nunca pensei em trabalhar na TV, mas já que estou, nenhum lugar poderia ser melhor. A ESPN Brasil fica, assim como a MTV, nas antigas instalações da TV Tupi. Os estúdios e auditórios estão lá. Modernizados, novinhos em folha, ativos, cheios de plasma, digitais, o escambau.

Mas o DNA está ali. Os fantasmas. Ali nasceu a TV brasileira (é uma licença poética, porque a primeira transmissão, em 18 de setembro de 1950, foi feita em outro lugar). Ali funcionava a TV Tupi, naquele prédio, naquelas paredes, naquelas portas, naquele chão.

Na rua onde estaciono meu carro Silvio Santos, Chacrinha, Chico Anísio e Eva Vilma também paravam. Pisavam a mesma calçada, faziam o mesmo trajeto, entravam pela mesma porta. Isso tem algum significado. Daquele mesmo teto saíam ondas invisíveis que levavam a um Brasil desconhecido o “Almoço com as Estrelas” e “Beto Rockfeller”. Meu pai chegou a fazer uma ponta em algum teleteatro da Tupi, num auditório cujo palco eu, 50 anos depois, já devo ter pisado.

Isso tem algum significado. Muita coisa que não significa nada para ninguém significa muito para mim.

A TV Tupi morreu em 18 de julho de 1980. Neste pequeno trecho de um documentário da Cultura há uma imagen que, suponho, seja do momento mesmo em que um engenheiro do Dentel retirou o cristal do transmissor e tirou a emissora do ar. Foi no décimo andar do prédio que eu vejo todo dia.

A Tupi tinha vida, como vida têm as emissoras de TV, com seus artistas, técnicos, diretores, jornalistas. No fim do dia, eles todos desfilavam pela tela num clipe de encerramento da programação. Esse aí é de 1977. Era como um recado: vão dormir, amanhã começamos tudo de novo. E surgiam as barras coloridas, um apito agudo, e era hora de dormir. Eu já tinha ido fazia tempo, estudava de manhã, mas quantas e quantas noites tanta gente encerrou seu dia olhando aquelas barras coloridas, pensando na vida, no dia seguinte?

Como a Tupi fechou faz 26 anos, muita gente nem sabe o que ela levava ao ar. Mas tinha tudo. Esporte, show, Ofélia ensinando a cozinhar, e na programação noturna, novelas e telejornais. Como hoje.

É bela a história da TV Tupi, mas ela foi esquecida. O 4 virou TVS, depois Silvio Santos levou tudo para a Vila Guilherme, renomeou como SBT. A Abril ocupou o prédio mas nunca vingou como emissora, acabou alojando ali a MTV. Outros canais sumiram, o 9 da Excelsior virou Manchete em SP, depois essa coisa horrorosa chamada RedeTV! (isso lá é nome de emissora?), sumiram como sumiram a Pan Air, a Cruzeiro, a Transbrasil, a Vasp, a Vemag, a Willys, a Simca, a Mesbla, o Mappin, a G. Aronson, as Casas da Banha, o Peg-Pag, as balas Sonksen e mais um monte de coisas.

Me apego a coisas e tempos. Por isso volto a eles. Seja de propósito, comprando um carro velho, seja por acaso, ao trabalhar no prédio da Tupi.

É preciso voltar para entender, e mesmo assim a gente não entende nada.