EDDIE

SÃO PAULO – Pode-se dizer, querendo romancear e forçando um pouco a barra, que a Jordan só existiu porque pegou fogo na cabelo de Michael Jackson. Era Eddie Jordan que contava essa cascata sempre que novatos o entrevistavam sobre as origens de seu time.
OK, não era uma cascata por inteiro, talvez uma meia-cascata. O cantor americano sofrera um terrível acidente em 1984 quando gravava um comercial para a Pepsi em Los Angeles. Foi no dia 27 de janeiro. Ele tinha de descer uma escada cantando e atrás dele surgiam faíscas para dar um efeito pirotécnico. Num dos takes, soltaram as faíscas antes do tempo e seus cabelos pegaram fogo, por conta do uso de alguns produtos cosméticos inflamáveis como xampus, óleos e condicionadores. Michael teve queimaduras graves de segundo e terceiro graus no couro cabeludo. A Pepsi pagou US$ 1,5 milhão como indenização, que o cantor doou ao hospital onde foi tratado. A recuperação foi dolorosa e traumática e Michael se tornou dependente de analgésicos por causa das dores que o acompanharam até a morte, em 2009.
Mesmo assim, a marca de refrigerantes seguiu patrocinando aquele que era o maior popstar do planeta nos anos seguintes, financiando suas megaturnês mundiais que lotavam estádios e casas de espetáculos. Mas no final de 1990, por motivos de saúde e estafa, ele cancelou “Dangerous”, que a Pepsi também iria bancar com mais de US$ 100 milhões. A verba estava reservada para dois anos de shows. Com a turnê cancelada, sobrou dinheiro na Pepsi.
É onde entra nosso amigo Eddie Jordan. Nos anos 80, o irlandês tinha uma equipe de F-3000 e vivia confortavelmente com o patrocínio dos cigarros Camel em seus carros. Um de seus pilotos era o francês Jean Alesi. Em julho de 1989, a Tyrrell teve de demitir Michele Alboreto porque o italiano era apoiado pela Philip Morris e fazia parte da turma dos “pilotos Marlboro”. O time inglês tinha conseguido uma verba de publicidade da mesma Camel e chamou o jovem francês para disputar o GP da França. Ele terminou em quarto lugar e acabou ficando até o final do ano, virando titular na temporada seguinte. Eu estava nessa corrida. Foi minha primeira cobertura fora do Brasil.
Depois da prova de Paul Ricard, Alesi sugeriu ao antigo chefe que montasse uma equipe de F-1. Segundo ele, não era nenhum bicho-de-sete-cabeças. Contou que a estrutura da Tyrrell era parecida com a que ele tinha na F-3000, que carro de corrida era carro de corrida, que nem precisava de tanta gente assim e que poderia ser uma boa. Eddie se animou. Falou com a Camel, recebeu um “ok, vai lá que a gente ajuda”. Buscou um engenheiro chamado Gary Anderson, que fazia os chassis da Reynard. Tirou mais alguns técnicos da fábrica inglesa e resolveu abraçar a aventura.
E o Michael Jackson, o que tem a ver com isso?
Calma.
Estava tudo certo para Jordan estrear na F-1 em 1991 com o patrocínio da Camel, mas aí entrou a Benetton no meio para atravessar a conversa. Depois de fechar a temporada de 1990 com duas vitórias de Nelson Piquet no Japão e na Austrália, a equipe já comandada por Flavio Briatore bateu na porta da RJ Reynolds e convenceu a tabaqueira a estampar sua marca mais popular, a mesma Camel de Eddie Jordan, em seus carros coloridos.
Eddie ficou com um carro de F-1 e sem um um tostão no bolso.
E é aí que entra Michael Jackson. No fim daquele ano, Paul Adams, um executivo da Philip Morris, convidou Jordan para uma palestra na Pepsi. Foi lá que ele soube do cancelamento da turnê de Michael, e que havia dinheiro fresquinho ali procurando onde ser gasto. A Pepsi precisava torrar a verba em algum lugar, e Jordan conseguiu, assim, o patrocínio de um refrigerante que fazia parte do portfólio da companhia, o clássico 7-Up.
Assim nasceu o Jordan 191, que quando foi para a pista em novembro de 1990, pilotado por um veterano já aposentado amigo de Eddie, John Watson, não tinha nem pintura porque não havia dinheiro para comprar tinta. Era todo preto, na fibra de carbono.
Mas logo veio a 7-Up, e Eddie contava, também na base da meia-cascata, que saiu atrás de empresas globais que usavam o verde nas suas embalagens, e que pegou um avião e foi para o Japão, onde passou dois dias na porta da Fuji até convencer a fábrica de filmes e câmeras fotográficas a colocar uma grana na F-1. Fez o mesmo com o governo da Irlanda, alegando que o país precisava associar sua bandeira a um ambiente de tecnologia de ponta, já que o os planos estatais eram de transformar a pequena república num hub para empresas do setor. Toda quinta-feira de GP, onde a F-1 corria, Eddie dava palestras para investidores locais nas embaixadas e consulados irlandeses.
A Jordan estreou em 1991 com Bertrand Gachot e Andrea de Cesaris em seus carros. Passou metade do ano fazendo a pré-classificação. Terminou aquele Mundial num estupendo quinto lugar e apresentou ao mundo, em Spa-Francorchamps, um alemão imberbe chamado Michael Schumacher, que substituiu o desafortunado Gachot — preso na Inglaterra por uma briga de trânsito.
Até 2005, quando foi obrigado a vender a equipe porque já não tinha mais como bancar as despesas numa categoria que perdera o controle da gastança, a Jordan participou de 250 GPs. Venceu quatro deles, com Damon Hill (Bélgica/1998), Heinz-Harald Frentzen (França e Itália/1999) e Giancarlo Fisichella (Brasil/2003, troféu recebido na etapa seguinte, em Ímola, por erro de cronometragem). Teve quatro pilotos brasileiros: Roberto Moreno, Maurício Gugelmin, Rubens Barrichello e Ricardo Zonta. Rubinho foi responsável pela primeira das duas poles do time — em 1994, na Bélgica. No total, a equipe conquistou 17 pódios.
E conquistou o coração da F-1, também. Porque Eddie Jordan não era só um dono de equipe. Era a figura encarnada do verdadeiro garagista, alguém como Ken Tyrrell, Ron Dennis, Frank Williams, Bernie Ecclestone. E alguém que, sobretudo, levava sorrisos ao paddock. Fez da F-1 um palco para exibir sua felicidade.
E isso é literal. Eddie tocava bateria e era um roqueiro puro. Em Silverstone — e isso nem todo mundo sabe porque aconteceu numa época em que a vida não era registrada em celulares –, todos os anos, Eddie montava atrás dos boxes, no baú de um caminhão velho aberto na lateral, um palco para sua banda tocar. Lá pelas oito, nove da noite, quando o autódromo já tinha esvaziado e só sobrávamos nós, jornalistas, e o pessoal das equipes, quase todos ingleses, subiam ao caminhão um guitarrista (que quase sempre era Damon Hill), um vocalista, um baixista, um tecladista e, se tivesse espaço, alguém com um violão (Jacques Villeneuve arriscava umas dedilhadas). Na bateria, lá no fundo, ele, Edmund Jordan. Com suas baquetas e sua energia inesgotável. E quem queria cantar subia no caminhão e cantava, e a cerveja rolava solta lá embaixo, e aquilo, para mim, era a Fórmula 1 de verdade.
Eddie Jordan, nos últimos anos, vinha trabalhando como comentarista de TV. Muito bem informado, deu vários furos de reportagem, como a contratação de Lewis Hamilton pela Mercedes, em 2012, e a saída de Adrian Newey da Red Bull, no ano passado. Há alguns meses, disse ao vivo num podcast com David Coulthard que tinha descoberto um câncer.
A gente chamava o Jordan de “peruca”. De 1993 a 1996, frequentamos muito a equipe por causa de Barrichello. A brincadeira era essa, que ele usava peruca, e sempre que ele chegava ao motorhome com seus passos rápidos e esbaforido, nos xingava de volta, rindo. Jurava que não era peruca. Ríamos de volta. E ele implicava, rindo o tempo todo, que vivíamos lá filando o almoço, seu café, seu chá, seus biscoitos e suas geladeiras. Que nunca mais apareceríamos quando não tivesse mais um brasileiro correndo para ele.
Falo por mim, continuei aparecendo de vez em quando, mesmo sem brasileiros correndo para ele. Numa dessas visitas rápidas, me deu de presente um lindo cinzeiro de louça, quando sua equipe era patrocinada pela Benson & Hedges. Guardo da Jordan, também, dois bonés — um reproduzindo o capacete de Hill, o outro amarelo, o amarelo que ele gostava em seus carros.
Um dia contei a ele que graças a sua equipe tinha conseguido conversar com uma das pessoas mais importantes do mundo, George Harrison, que sempre que ia a uma corrida deixava sua mochila e tomava seu chá no motorhome da Jordan. “Ah, é?”, espantou-se. “E o que você disse a ele?”, perguntou. “Hi”, falei. “E ele?”, seguiu Eddie, que parecia interessado no desfecho daquela breve crônica oral. “Ele disse ‘hi’ e sentou para comer”, contei. “Só isso?” “Só.” Ele então fez uma pausa e concluiu, com enorme sabedoria: “Bem, é mais do que a maior parte da humanidade conseguiu”.
Eddie Jordan morreu hoje aos 76 anos na Cidade do Cabo, na África do Sul.