Blog do Flavio Gomes
Pequim 2008

A MORTE DO GRILO

PEQUIM (de luto) – O episódio abaixo foi relatado por um grilo falante, parente do falecido, que me procurou ontem na entrada do Parque Olímpico. Ele veio de longe, chegou cansado e esbaforido, falando pelos cotovelos, e tive de recorrer a um tradutor, porque misturava mandarim com algumas palavras em inglês. Veio a mim porque identificou […]

PEQUIM (de luto) – O episódio abaixo foi relatado por um grilo falante, parente do falecido, que me procurou ontem na entrada do Parque Olímpico. Ele veio de longe, chegou cansado e esbaforido, falando pelos cotovelos, e tive de recorrer a um tradutor, porque misturava mandarim com algumas palavras em inglês. Veio a mim porque identificou o logotipo da ESPN Brasil na camiseta. “Seu amigo matou meu primo!”, acusou, apontando as antenas na minha direção de forma inequívoca.

Foi quando chamei o tradutor, imediatamente, farejando confusão.

O que segue é a mais pura expressão da verdade, sem licenças poéticas.

Fala o grilo.

“Sou um grilo bem colocado na sociedade chinesa. Vou até a competições olímpicas sem ser incomodado [neste momento, perguntou meu endereço e-mail, eu dei, e prometeu que ia mandar uma foto, e mandou mesmo]. Hoje agencio outros grilos e grilas para o mercado que vende ‘pets’ [como disse, o grilo mistura os idiomas, é um poliglota fajuto, mas vou tentar manter o original quando não prejudicar o entendimento] no centro da cidade. Aqui na China as pessoas têm animais de estimação muito variados, ‘exotics’. Os grilos me procuram em busca de uma vida melhor. Sabem que é perigoso viver nas florestas, porque podem ser engolidos por pássaros ou esmagados pelos ursos que não olham por onde andam. E também não gostam de viver nas ruas porque os chineses dirigem muito mal e cospem o tempo todo.”

Segue o grilo, agora um pouco mais calmo.

“Toda semana passo no mercado para ver como estão as coisas. Eu tinha levado meu primo sexta-feira, dia 8 de agosto, dia da sorte, para ser vendido. Era questão de tempo para encontrar um dono. Um grilo forte, bonito, ótimo para crianças e idosos, ‘fine person’ [gente fina, n.t.]. Estava numa gaiolinha muito confortável e sendo bem alimentado com mosquitos cambojanos e folhas de jasmim [foi o que entendi, não sei se essa é a dieta dos grilos, a tradução foi um problema o tempo todo]. Foi quando apareceu seu amigo.”

Pedi que ele descrevesse “meu amigo”, para saber quem, afinal, tinha se metido em tamanha encrenca, um caso de homicídio grílico, cujas penas devem ser duríssimas num país que não perdoa criminosos comuns e persegue dissidentes. Pela descrição, descobri quem é. Caio Salles, cinegrafista, repórter e editor que está fazendo matérias de curiosidades pela China com o Marcelo Duarte pela ESPN. “Eu fiquei com dó do grilo”, me contou, em prantos, quando fui apurar o outro lado da história.

Segue o grilo poliglota.

“Seu amigo comprou meu primo. Um outro, que estava na gaiola vizinha e morou em Macau, entende um pouco de português e me contou tudo. Seu amigo disse que queria libertar meu primo. Livrá-lo das garras dos chineses. Soltá-lo na mata, jogá-lo na ‘jungle’. Porra, quem seu amigo pensa que é? Delegado do Greenpeace? Presidente da Free Grilo International? O que ele sabe sobre os grilos chineses?”

Nesse momento o grilo poliglota se exaltou e dei um gole d’água para ele.

O Caio, de fato, comprou o grilo com o objetivo único de devolvê-lo à liberdade. Não perguntou se o grilo queria, porque a comunicação aqui é meio complicada, mas tinha a melhor das intenções e supunha que sim, qualquer coisa lá fora seria melhor do que viver confinado numa gaiola.

E foi o grilo de Macau quem contou ao grilo poliglota o que aconteceu.

“Seu amigo pegou meu primo e o colocou sobre o banco da ‘van’ [perua, n.t.], ainda dentro da gaiola. Estava um calor dos diabos. Meu primo começou a cozinhar. Foram horas naquela estufa. Um crime, uma tortura inominável! Ele gritava lá de dentro, mas ninguém ouvia. Quando seu amigo voltou, meu primo estava praticamente morto!”

Volta o Caio, ainda sob estado de choque depois de confirmado o óbito. “Ele realmente passou mal. O calor o deixou cambaleando, com os olhos injetados e as pernas moles, todas elas. Corremos para o apartamento. Lá o ar-condicionado é forte, ele iria se recuperar. Subimos correndo com o grilo pelo elevador. Abri a gaiola lá em cima para ele respirar melhor. Mas quando entramos no apartamento, acho que aconteceu alguma coisa. O grilo tremeu, acho que estava muito frio. Não conseguiu sair da gaiola. Teve um espasmo e não se mexeu mais.”

Segue o grilo poliglota.

“Meu primo morreu de choque térmico. Seu amigo matou meu primo! Quem falou para seu amigo que os grilos não gostam de viver nas gaiolas? E agora? E agora?”

Agora, meu caro grilo poliglota, não tenho muito pra dizer, não. Apenas que seu primo era o grilo mais cagado do mundo. Com um bilhão de pessoas na China, o coitado foi ser comprado por um brasileiro de bom coração.