Blog do Flavio Gomes
Pequim 2008

FIM

PEQUIM (hi, London) – A China termina seus Jogos como campeã absoluta nas medalhas de ouro, com 51, mas perdendo para os EUA no total: 110 x 100. Assim, a imprensa americana dirá que os EUA ganharam, e o resto do mundo dirá que a China ganhou. O que não tem a menor importância. Serão […]

PEQUIM (hi, London) – A China termina seus Jogos como campeã absoluta nas medalhas de ouro, com 51, mas perdendo para os EUA no total: 110 x 100. Assim, a imprensa americana dirá que os EUA ganharam, e o resto do mundo dirá que a China ganhou.

O que não tem a menor importância.

Serão muitos os balanços baseados em números, todos muito interessantes, que vão pipocar na imprensa especializada nos próximos dias: o crescimento de um país, a queda de outro, a relação medalha/habitantes, ouros per capita, recordes, PIB, IDH, tudo. Digo que são interessantes porque o esporte, em muitos casos, é o espelho de uma nação. E, normalmente, os países mais desenvolvidos acabam à frente daqueles que ainda têm coisas para resolver.

Oh, grande novidade.

A novidade é que não é sempre assim. O Brasil, por exemplo, terminou os Jogos de Pequim à frente da Dinamarca, da Suíça, da Finlândia e da Bélgica. Não quer dizer que seja um país mais aprazível para se viver do que esses todos. E ficou atrás da Jamaica, do Quênia e da Etiópia. Sendo muito sincero, eu não trocaria as ruas esburacadas da minha querida e problemática São Paulo pelas ervas jamaicanas, pelos rinocerantes quenianos ou pelo famélico landscape etíope.

O resultado final de um país numa Olimpíada indica, na maior parte das vezes, como ele se preparou esportivamente, e qual o grau de prioridade com que distingue certas modalidades. Só isso. A Dinamarca e a Finlândia, por exemplo, estão cagando e andando para os 100 m rasos ou para o futebol. Mas vai ver o que eles fazem nos Jogos de Inverno com esquis e patins. É tudo uma questão de prioridade.

Dos 204 comitês olímpicos nacionais inscritos para os Jogos, 87 foram agraciados com ao menos uma medalhinha. 55 ganharam medalhas de ouro. Sete ficaram com apenas um bronzezinho, e acho que cada um desses sete merece uma lembrança: Afeganistão, Egito, Israel, Moldávia, Ilhas Maurício, Togo e Venezuela. No total, foram distribuídas 958 medalhas, 302 de ouro, 303 de prata e 353 de bronze.

O Brasil ficou em 23º no quadro de medalhas, com três de ouro, quatro de prata e oito de bronze. Pelo critério de total de medalhas, as 15 brasileiras colocam o país em 17º. Igualou-se o recorde particular de Atlanta/1996, também com 15. Mas não o desempenho de Atenas em ouros, cinco.

Isso tudo, de um ponto de vista muito pessoal, também não tem a menor importância. Alguém haverá de dizer, se já não disse, que o Brasil foi demais, nunca chegou a tantas finais, está na cara que está crescendo “a nível internacional” e tudo mais. Alguém haverá de dizer que foi uma merda completa, que a ginástica foi um fiasco, que o judô deveria ter trazido um ouro, que a natação foi um embuste, tirando o Cesar Cielo, que o futebol foi uma vergonha e todo mundo terá razão, tanto aquele que achou que foi demais, como aquele que achou uma bosta.

Eu não achei nem uma coisa, nem outra.

Achei que um mês de China iria me encher o saco, porque ando meio impaciente, ultimamente, com quase tudo. Achei que um mês de China seria um transtorno que colocaria minha vida de ponta-cabeça, porque no fundo ando me preocupando com muita coisa irrelevante, ultimamente. Achei que um mês de China, no fim das contas, para quem já fez tantas coisas na vida, seria apenas isso: um mês num país que não me diz nada de especial.

Mas não foi.

Cheguei há pouco mais de 20 dias, e quando tento me lembrar desse distante dia 1, parece que foi em outra vida. O primeiro contato com o apartamento, com minha nova cama, meu novo banheiro, a vista da janela, a gaveta dos talheres, o açucareiro improvisado, o prato da manteiga, a torradeira, o café solúvel, a textura da toalha, a visita ao supermercado, o cálculo dos preços, a nova portaria, o novo elevador, a mão das ruas, os cheiros das calçadas, os sons das buzinas, o encontro com os colegas da TV, a primeira visão do Parque Olímpico, a imersão nos estúdios, o lugar na sala de imprensa, o gosto da comida, a chegada do trio, o pub da primeira noite, o restaurante da segunda, os bares da terceira, e grava, e escreve, e entrevista, e telefona, e vai até ali, e volta para cá, e encontra um, e encontra outro, e tudo começa a ficar familiar, uma nova vida vai se construindo a cada minuto, a cada visão pela janela do táxi, a cada caminhada sob o sereno da madrugada pelas alamedas de Chaoyang.

Como se vê, é muito mais do que um evento, mas um mergulho mesmo numa nova vida, em que não há dois dias iguais, porque eles são pautados por aquilo que não é a sua vida normal, um dia é um jogo, no outro é um salto, e depois um mergulho, e uma cesta, e um saque, e uma decisão, e um choro, e uma explosão de alegria, estamos aqui para isso, afinal. E quando o dia termina, e esticamos o dia ao máximo, esperando que mais novidades nos sejam apresentadas pelo acaso, porque só as agendas esportivas já não nos bastam, o sono passa a ser quase um estorvo, porque aí queremos mais e mais, sugar os dias até o bagaço, como sobreviventes de uma catástrofe nuclear que sabem que em algumas horas estarão deformados e mortos, e por isso cada segundo, cada um deles, tem de ser muito especial.

Foi isso, a minha Olimpíada. Não me comovi com recordes, mas me comovi com a noite calada das ruas de Pequim e com a maciez da pele de algodão nos bancos dos táxis que começavam e terminavam meus dias admiravelmente novos. Não me comovi com medalhas, mas me comovi com passeios que imagino terem sido longos por um parque onde algumas pessoas ainda andam de mãos dadas. Não me comovi com vitórias, mas me comovi com a simplicidade de um gesto, de um olhar e de um sorriso oriental. Não me comovi com derrotas, mas me comovi com a redescoberta da cumplicidade entre amigos velhos e novos.

Me comovi com os longos silêncios e com o reencontro comigo mesmo, com algumas lágrimas e gargalhadas que não julgava mais ser capaz de.

Me comovi porque aconteceram tantas coisas que eu achava que não aconteceriam mais.

Olho para o lado agora e tenho a impressão de que só eu tenho essas idéias distorcidas de algo que, provavelmente, não passa do que é. Que estou ficando piegas e bobo, que deveria fazer o que todos ao meu lado fizeram nestes dias, trabalhar mais, furiosamente, ver tudo, estar em todos os lugares, vibrar, socar o ar. E por isso fico de novo com a sensação de que fiz muito menos do que todos, muito menos do que poderia, muito menos do que deveria.

Mesmo assim, quando voltar levando tal remorso na bagagem, sei que vou chegar e sentir um vazio no estômago. Talvez o mesmo vazio que esta cidade vai sentir amanhã, quando tantas vidas que vieram até aqui com dia marcado para ir embora começarem a partir.

E as minhas 20 e poucas vidas novas de 20 e poucos dias diferentes em Pequim irão aos poucos se transformar em lembranças que com o passar do tempo ficarão esfumaçadas, difíceis de enxergar e de compreender, o que é uma pena, porque eu queria lembrar de tudo para sempre.