Blog do Flavio Gomes
Stock Car

OS CARROS

SÃO PAULO (2 de 4) – Na Nascar os caras correm quase todo fim de semana, quase que o tempo todo em ovais, em 200 categorias diferentes. A quantidade de corridas é absurdamente maior que no Brasil. E, salvo engano, não morre ninguém desde Dale Earnhardt em fevereiro de 2001, em Daytona. Me lembro, também, […]

SÃO PAULO (2 de 4) – Na Nascar os caras correm quase todo fim de semana, quase que o tempo todo em ovais, em 200 categorias diferentes. A quantidade de corridas é absurdamente maior que no Brasil. E, salvo engano, não morre ninguém desde Dale Earnhardt em fevereiro de 2001, em Daytona. Me lembro, também, de uma ou outra morte nas franquias mexicanas, é verdade. Mas, na categoria principal, acho que a de Earnhardt foi mesmo a última. E olha que os caras, lá, batem muito mais que os pilotos da Estoque e suas satélites (Light, Vicar, Montana).

Dale, uma lenda da Nascar, morreu porque não usava HANS e porque não costumava prender o cinto direito. Depois de sua morte, a categoria instaurou diversas medidas obrigatórias de segurança. A tecnologia de construção dos muros também é constantemente atualizada. Mas o que evita mesmo mais mortes na carnificina semanal da Nascar são os carros. Eles são seguros.

Os da Stock & Satélites, não. Sejamos sinceros, e peço que chefes de equipe e pilotos que leem este blog, e os há, se manifestem. Nem que seja anonimamente. E me desmintam categoricamente se eu estiver errado, porque se o fizerem, ficarei feliz e tranquilo.

Esses chassis tubulares são frágeis, antiquados, defasados. Empurrados por motores que desenvolvem 520 hp na V8 (350 hp na Montana), não combinam com as velocidades que alcançam. São pesados e destrambelhados. Mal construídos. E antes que os construtores me acusem de calúnia e difamação, expliquem, por favor, todos os capôs voadores, o assoalho que se desprendeu de não sei quem domingo, as portas que se se soltam, as carenagens que se desmancham ao vento.

Anos atrás, não muitos, uma fonte me contou que cada chassi é entregue de um jeito para cada equipe. Há erros gritantes de alinhamento, montagem e soldagem. As equipes de ponta refazem seus carros de cabo a rabo depois de recebê-los do fornecedor. Sem exagero algum, pode-se dizer que um carro da Estoque & satélites, hoje, nada mais é que um amontoado de tubos soldados cobertos por uma carenagem de fibra de vidro. Não há célula de sobrevivência. Os impactos laterais são ou fatais, como com Sperafico e Sondermann, ou quase isso.

E me pergunto: quem homologa esses carros? E como? Quais as normas seguidas? Quais os testes feitos? Quais os laudos existentes? São feitos testes de resistência, torção, impacto? De quanto em quanto tempo eles são revisados? Por quem? A cada revisão, há um novo teste, uma vistoria? Quais os parâmetros? Quais os protocolos? Como são os bancos? Onde são fixados? Como são os testes e ensaios de extração do piloto em caso de acidente? A CBA não tem pessoal técnico para fazer isso. A CBA não consegue nem fazer antidoping. Ler os regulamentos redigidos pela CBA é um verdadeiro filme de terror. Ninguém entende uma palavra. Frases mal construídas, textos confusos, uma baixaria jurídica inesgotável para quem quiser contestar cada parágrafo. As federações locais nem conseguem abrir um motor direito. Tudo é pago, para tudo há taxas e mais taxas, multas, penas. A preocupação é arrecadatória, não fiscalizatória. Existe “fiscalizatória”? Bem, se não existe, passou a existir.

Ninguém cobra segurança desses carros como deveria, é evidente. Claro que eles aguentam pancadas e batidas. Mas quanto aguentam? O de Sperafico não aguentou. O de Sondermann, também não. E não se cobra algo sério, porque há um cartel nas principais categorias brasileiras. A Vicar, promotora dos eventos, tem negócios com a família Giaffone, que faz os carros e prepara os motores da Estoque, e fará do novo Brasileiro de Marcas. É gente do meio, sem dúvida, uma linhagem de pilotos com história no automobilismo brasileiro. Mas que há muito passou a ver o meio como uma forma de ganhar muito dinheiro. Em várias frentes — construção, preparação, importação, venda, reposição, manutenção. E a ausência de controle dos amiguinhos da CBA leva à negligência desenfreada.

Na Nascar, na qual a Stock se espelha orgulhosamente (está no site da categoria: “Com nível técnico equivalente às principais categorias do mundo, a disputa hoje supera até mesmo a Nascar norte-americana, com um carro moderno e adequado às necessidades internacionais especialmente no que diz respeito à segurança”; porra, quem acredita nisso? Os patrocinadores?), os carros não se desmancham. Capotam, dão piruetas, arrebentam muros, e os pilotos saem deles batendo a poeira do macacão. Aqui, saem de ambulância.

E tem mais. Pergunte a um piloto da Estoque & satélites como é a visibilidade dentro de seus carros. E pergunte como é quando chove. Lembram de Max Wilson outro dia, numa prova com chuva, falando no rádio? “Não dá para enxergar nada!”. Os vidros (que não são vidros; são de policarbonbato) embaçam desgraçadamente. A visibilidade é zero. Zero. E os caras enfiam 200 por hora sem enxergar um palmo à frente do nariz. Por quê? Porque os carros são mal construídos, mal concebidos. A posição do piloto é absurda, o cara não tem visão lateral. Os adesivos no parabrisa ocupam metade da área de transparênca. São, em resumo, uma aberração — apesar da roupagem moderna, colorida, marqueteira.

Me espanta, realmente me espanta, ver empresas do porte da Chevrolet e da Peugeot (e, antes, da VW e da Mitsubishi) carimbarem suas marcas nessas coisas. Ontem, Sondermann, para todos os efeitos, morreu numa picape Montana. Viu, GM? Apesar de nada de Montana ter, aquele carro ostenta essa marca. Como é que fica para o consumidor? Qual a participação dessas fábricas, cheias de engenheiros que passam o dia pensando em segurança, nesse festival de atrocidades técnicas? Nenhuma. Usam as bolhas para fazer propaganda de seus carros. Que nada, nada, têm a ver com aquilo que está na pista. Nada.

No post anterior, eu disse que não se deve responsabilizar o Café, sozinho, pelas mortes desses dois meninos. O mesmo pode-se dizer dos carros. Sozinhos, eles não são culpados. Anos atrás, o Gualter Salles saiu voando num Stock em Buenos Aires, caiu dentro de um túnel, e sobreviveu. Foi uma festa. Olha lá a segurança de nossos carros!

Sim, eles têm um certo grau de segurança. Mas, claramente, não é o suficiente. Muitas vezes, a sobrevivência é muito mais uma questão de sorte. E eu, se fosse piloto de verdade, não sentava num negócio desses contando apenas com a sorte. A 150 km/h num Lada de lata, envolto num monobloco rígido cheio de santantonios e empurrado por míseros 124 hp, sei que pouca coisa de ruim pode acontecer comigo.

Mas num carro de uma categoria que se intitula uma espécie de Nascar tupiniquim, pode.