Blog do Flavio Gomes
Brasil

DIFERENCIADO

SÃO PAULO (guarde) – Será que todo mundo consegue se lembrar de quando fez sua estreia como cidadão? Eu tinha uns 15 ou 16 anos. A gente fez uma protesto no colégio em Campinas por causa da substituição de um monte de professores do Objetivo. Mandaram embora os “nossos” e enviaram um monte de professores […]

SÃO PAULO (guarde) – Será que todo mundo consegue se lembrar de quando fez sua estreia como cidadão?

Eu tinha uns 15 ou 16 anos. A gente fez uma protesto no colégio em Campinas por causa da substituição de um monte de professores do Objetivo. Mandaram embora os “nossos” e enviaram um monte de professores da matriz. Ficamos de costas para eles, na aula.

Mas foi um pouco depois, quando me vi vendendo sanduíche natural num evento no MIS pró-Diretas Já, que percebi que fazia parte, mesmo, de alguma coisa. Acho que já contei isso aqui. Não é importante.

Hoje meu moleque mais velho fez a sua estreia — o mais novo ficou jogando bola, anda meio descrente de protestos desde o episódio do aumento dos salgados na escola dele no começo do ano, que acabou não dando em nada apesar do boicote à lanchonete. Não sei se vai se lembrar no futuro, mas eu vou. Ele tem 12 anos. Talvez não compreenda direito o que significou a manifestação que milhares de pessoas fizeram num bairro chique da cidade, Higienópolis, pela construção de uma estação de metrô na região. Mas estava lá.

Para quem não é de São Paulo, conto rapidinho. Nesta semana, uma associação de moradores do bairro conseguiu fazer com que o governo do Estado cancelasse a construção de uma estação de metrô na esquina da Av. Angélica com a R. Sergipe. A “Folha” registrou o episódio e uma moradora deu uma declaração ao jornal que virou mote na internet. Disse a moradora que uma estação de metrô traria ao bairro “mendigos, camelôs, ladrões, uma gente diferenciada”.

“Gente diferenciada” foi parar no facebook e no Twitter e alguém deu a ideia de se fazer um churrascão na frente do shopping Higienópolis, chiquérrimo, com farofa, refrigerante barato, sambão e tudo mais. O movimento cresceu e em determinado momento mais de 50 mil pessoas, no facebook, prometeram ir ao churrascão.

O que se viu foi uma manifestação nascida na internet, sem liderança alguma, que passou pelo Twitter e foi parar na rua.

Levei o moleque. Fomos de jipe, o que já é divertido por si só. Ele levou seu repinique, fazia aula de percussão até o ano passado, e quando chegamos já rolava um batuque, e lá foi ele com seu instrumento e uma baqueta misturar-se à multidão. Sério, compenetrado, entrou no ritmo, ficou uma hora tocando seu tambor.

Acho que hoje se sentiu parte de alguma coisa. Bem diferente de 1984, nas Diretas Já. Aquilo foi tenso e, no fundo, triste porque perdemos. Hoje, não sei se a cidade vai ganhar sua estação de metrô. Mas ganhou em humanidade. O protesto da gente diferenciada foi alegre, divertido, pacífico, apartidário, uma “vacina contra o ódio”, como definiu meu amigo Bob Fernandes. Ódio que transformou São Paulo, nos últimos anos, numa cidade quase inabitável, onde tudo é proibido, onde a tudo se reprime, onde não se pode levar uma bandeira num jogo de futebol, uma coisa cinzenta, cabisbaixa, deprimente.

Sei lá quantas pessoas diferenciadas estavam nas ruas arborizadas de Higienópolis hoje, assando uma carne no meio da avenida, tomando uma cachacinha, uma tubaína tamanho família, uma cerveja meio quente — os bares das redondezas nunca venderam tanto. Sei que meu moleque estava lá, com seu repinique e sua nova posição de cidadão que vai às ruas de sua cidade por aquilo que acha justo, ao lado de todo tipo de gente, brancos, japoneses, pretos, judeus, mendigos, policiais, metroviários, travestis, putas, maloqueiros, de tudo um pouco, porque uma cidade é isso, de tudo um pouco.

Ele voltou para casa, no jipe com uma bolha no dedo, considerando se não teria sido melhor levar o surdão em vez do repinique, falando como um hominho.

Já é um homão.