Blog do Flavio Gomes
Turismo

DAS BATATA

MUNIQUE (em casa) – Nos tempos das viagens da F-1, eu vinha para a Alemanha umas cinco vezes por ano. Eu e a turma toda, para corridas em Nürburgring, Hockenheim, Spa, Budapeste, Zeltweg, qualquer coisa era pretexto para vir para cá, porque aqui é legal. Nenhum de nós, exceto o Baiano, que mora até hoje […]

MUNIQUE (em casa) – Nos tempos das viagens da F-1, eu vinha para a Alemanha umas cinco vezes por ano. Eu e a turma toda, para corridas em Nürburgring, Hockenheim, Spa, Budapeste, Zeltweg, qualquer coisa era pretexto para vir para cá, porque aqui é legal. Nenhum de nós, exceto o Baiano, que mora até hoje em Heidelberg, falava alguma coisa em alemão além do básico Bier, Bratwurst e, no caso dos mais letrados, Karttofensalat.

De modo que foi assim que surgiu um de nossos bordões favoritos, o “Das-qualquer-coisa”.

Em alemão, ao menos é o que me disseram um dia, e nunca me preocupei muito em apurar a veracidade dos fatos, há três artigos: Das, Die e Der. Um seria feminino, outro masculino e outro boiola. Não sei bem qual é qual. Daí que depois da primeira cerveja, passávamos a chamar tudo de Das-alguma-coisa, acrescentando “en” ao final de qualquer palavra para demonstrar nossa familiaridade com o idioma tedesco.

É com enorme ternura que lembro desses tempos, não tão distantes assim, mas pertencentes a uma outra vida, talvez. O Reginaldo era o que mais se divertia quando pedíamos Das Conten no restaurante, ou quando reclamávamos das Das Multen que a polícia lavrava em nossos carros irregularmente estacionados no calçadão às margens do Neckar, ou quando solicitávamos Das Telefonen ao pessoal da sala de imprensa. Regi gargalhava de sair lágrima do olho, ainda mais quando a garçonete chegava e alguém dizia Das Puten, e assim era.

Bem, ando meio sumido durante este breve giro pelo reino da Prússia, afinal é uma viagem despretensiosa do ponto de vista turístico e ando meio de saco cheio dessa mania global de dividir, “compartilhar”, tudo, qualquer merda, pelas ditas mídias sociais. Neguinho assa uma maminha em casa, vai para o feicebúqui; excursiona até Praia Grande, pinga vídeo no iutube; janta um miojo, registra no tuíter.

Menos, pessoas, menos. Sejamos relevantes.

E é só pela relevância que venho cá, nesta madrugada fria da Bavária, para relatar o episódio ocorrido há algumas horas no Olympiahalle durante o intervalo da apresentação do épico roqueiro, quando o mais velho sacou de um punhado de moedas para comprar um cone de batatas fritas e quando voltou contou, gargalhando como o Reginaldo, que pediu à moça do caixa Das Batata, e ela não entendeu nada, e então ele sorriu para ela com os olhinhos vivazes e mandou um “Ein Pomme Frite” com o melhor sotaque bávaro que foi capaz de produzir, e a moça deve ter sorrido de volta e lhe entregou as batatas fritas.

Eu não tinha contado para ele que no século passado também costumava falar Das Batata, ou Bataten, na versão barroca, e meus olhos ficaram cheios quando ele contou a pequena travessura linguística, e é ótimo que tais marejamentos ocorram em locais escuros como ginásios em noites de shows musicais porque ninguém vê, nem eles.  O mais novo, atento a detalhes, costuma perceber essas coisas. Por isso fiquei atrás dele durante toda a apresentação do épico roqueiro, procurando disfarçar o significado que tinham para mim aquelas duas horas e meia no Parque Olímpico que há 39 anos, de alguma forma, decidiu pela TV o rumo que minha vida deveria tomar. Eu tinha 7 anos, idade em que se tomam decisões importantes sobre o futuro.

Futuro.

Em verdade vos digo que faço esta pequena viagem por saber perfeitamente que talvez seja a última chance da minha vida de me fazer ouvir por duas cabecinhas ainda curiosas e atentas ao que o pai diz. O pai que fala sem parar e para tudo tem uma explicação, é muita informação, pai, não dá para guardar tudo, reclama um, e o outro só ri. Qual a idade deles?, pergunta o segurança na porta do ginásio, e eu digo 10 e 11, e na verdade deveria dizer 11 e 12, mas me corrijo e digo 12 e 13 para evitar problemas, confuso até o último centímetro quadrado da testa enorme que o mais velho diz ser uma tela de cinema, porque queria que fossem, as idades, 6 e 7, não mais, mas já são quase 12 e 13, e em verdade  vos digo, depois dos 13 eles não vão mais me ouvir com tanta paciência e curiosidade. Não, não vão.

Esta é a última viagem com minhas crianças, em pouco tempo o pouco que sei e posso contar será menos do que eles querem ouvir, e só eu vou achar que ainda são crianças.

Crianças não deveriam crescer, é o que sempre penso quando vejo os dois dormindo. Mas se não crescerem, como serão capazes de dizer Das Batata?

Podem crescer, meninos.