Blog do Flavio Gomes
Futebol

POBRES LOS QUE NO LO SIENTEN

MONTEVIDÉU (chega de chivito) – É intervalo da preliminar e em volta do campo o patrocinador e promotor do torneio de verão faz desfilar um pobre diabo vestido de filhote de urso polar, daquelas coisas que jamais compreenderemos, visto que o patrocinador é de origem mexicana, fabrica pães de forma, bisnaguinhas e talvez biscoitos, e […]

MONTEVIDÉU (chega de chivito) – É intervalo da preliminar e em volta do campo o patrocinador e promotor do torneio de verão faz desfilar um pobre diabo vestido de filhote de urso polar, daquelas coisas que jamais compreenderemos, visto que o patrocinador é de origem mexicana, fabrica pães de forma, bisnaguinhas e talvez biscoitos, e que se saiba não há ursos polares a não ser nos pólos, na verdade só em um deles, e o México é bem distante de qualquer um dos pólos, portanto parece algo pouco sensato um panificador mexicano apelar para a figura de um urso polar meio afeminado para vender seus produtos.

Mas vá lá, o que nos interessa neste caso particular é menos o urso, o pólo e as bisnagas e mais a singeleza da cena, o urso de pé, segurando-se do jeito que dava para não tombar miseravelmente no gramado a cada guinada do motorista que conduzia um buggy vermelho provavelmente fabricado no país vizinho, de fibra de vidro e motor de fusca. Um buggy vermelho. Nada de sedãs japoneses, esportivos alemães ou SUVs coreanas. Um buggy vermelho e um urso polar, era o que tínhamos para hoje. Dali a pouco, logo depois da preliminar, a dupla buggy-urso voltaria a percorrer o gramado antes que começasse o maior clássico de futebol do planeta. Em campo, oito títulos da Libertadores, seis mundiais de clubes, 91 taças uruguaias. Não há clássico maior, é indiscutível. São 507 jogos com o de hoje (terminou de madrugada), 181 vitórias carboneras (incluindo aquelas dos tempos em que o Peñarol ainda era CURCC, o clube de críquete da companhia inglesa de linhas de trem, de 1891 a 1913), 164 dos criollos do Nacional e 162 empates.

Talvez por isso o Centenário estivesse cheio, apesar do pouco interesse que poderia despertar um torneio de verão oferecido pela padaria multinacional do urso polar. É porque, como escreveram os periodistas das folhas vendidas de Artigas a Treinta y Tres, quase todos saídos das rotativas de Canelones e Montevidéu, nunca é apenas mais um jogo. É o Clássico, ou El Clásico, no original, e o artigo não deixa muitas dúvidas sobre o que pensam os charruas deste jogo.

Chega-se ao Centenário atravessando um pequeno parque que leva às entradas das tribunas que, no Clásico, são divididas igualmente entre tricolores e carboneros. Nosso ingresso era para a Colombes, embora a vendedora na lotérica (onde se compra ingresso sem fila, atropelo ou qualquer outro aborrecimento) houvesse sugerido uma certa Tribuna América, longe dos barras. Mas somos, por assim dizer, ratos de arquibancada, avessos a qualquer compartimento num estádio que disponha de assentos estofados para plateia teatral. Queríamos ficar do lado da gente aurinegra, mas as entradas estavam esgotadas para o setor e acabamos nos dirigindo à hinchada alba. Que fique a Tribuna América para os turistas.

A entrada é rápida, os policiais escolhem um ou outro torcedor para revistar, sobe-se por uma escada escura de paredes pichadas, desviando de tambores e bandeiras estendidas pelos degraus. O público é muito jovem e há muitas meninas, todas lindas, como são as uruguaias, algumas com suas cuias de chimarrão e térmicas debaixo do braço, e é do grande carajo apontar na saída do túnel e dar de cara com o gramado judiado do palco da primeira decisão de Copa, em 1930, Monumento del Futbol Mundial, como informa o pequeno letreiro pintado sobre uma faixa de cimento azul celeste ao longo da mureta da arquibancada que fica de frente para o obelisco, sei lá se aquilo é um obelisco, aquela torre, enfim, que funciona como marco arquitetônico deste patrimônio da humanidade.

Não há cobertura de policarbonato fotossensível, estruturas de aço escovado, tirantes, arcos pintados de branco, camarotes com vidro fumê, escadas rolantes, teto retrátil. Há um fosso (com água) atrás de cada um dos gols, onde não me espantaria a presença de crocodilos ou piranhas amestradas, uma mesinha amarela de plástico acompanhada de uma cadeira branca igualmente plástica para o representante do jogo, rastros de ferrugem que descem dos postes metálicos que sustentam o alambrado e os reservas acomodam-se em bancos que felizmente não são feitos pela Recaro, e ficam encostados na mureta das tribunas centrais, protegidos por uma cobertura acrílica meio trincada aqui, embaçada ali, fosca acolá.

Há uma preliminar, como já mencionado quando da descrição da evolução da dupla buggy-urso polar, e quando ela termina, vitória do time de camisas verdes nos pênaltis, apontam nos túneis carboneros e tricolores, aqueles primeiro, estes logo depois, então o que se vê é isso aqui. (E depois isso, e mais isso, isso e isso.) É um amistoso, e os meninos não acreditam no que está acontecendo diante de seus olhinhos. Dispostos a apoiar o Peñarol antes que comprássemos os ingressos, tornam-se tricolores imediatamente. Eles nos acolheram muito bem, justificou o mais velho na volta ao hotel, e fui incapaz de discordar dele, ainda mais após o uso de “acolher”, que me pareceu muito pertinente e adequado à situação. O mais novo, já bastante rouco, passou boa parte do caminho pelas calçadas da madrugada de Montevidéu, já que táxi estava difícil, tentando traduzir alguns gritos de guerra, nos quais incluiu até a improvável expressão “fumamos um panetone”. Mas eu já havia notado no estádio que ele, assim como o irmão, desatou a cantar todos os cantos por semelhança fonética, algo que essas crianças pegam rapidamente, identificando uma palavra aqui e outra ali, sendo hijo de puta algo de compreensão universal, assim como la madre que los parió, e sendo assim misturaram-se à multidão num ambiente que lhes é muito familiar: de pé o tempo todo, sentados no intervalo para descansar, descascando impropérios aos rivais o tempo todo sem temer os palavrões e as expressões que fariam corar Lúcifer no quinto dos infernos — assim como as lindas meninas uruguaias, e devo dizer: não há nada mais sensual no mundo do que meninas num estádio de futebol mandando a outra torcida à puta que a pariu; em espanhol, isso fica ainda mais gracioso.

O jogo de fundo começou perto das onze da noite, terminou depois da uma da manhã, já que foi igualmente decidido nos penais, e deixou impresso nas retinas dos meninos e em seus pequenos aparelhos decorados com uma maçã mordida imagens que jamais escaparão de suas memórias ainda repletas de espaço disponível — quando esse espaço escassear, sempre haverá uma maçã mordida, algo que minha geração não teve, não essa maçã, pelo menos. Viram um futebol que jamais puderam testemunhar em São Paulo, lá onde extirparam a alma da arquibancada quando acabaram com a festa de cores, bandeiras, fogos, papéis picados, faixas, extirpando assim, igualmente, a alma do futebol, e é por isso, por conta dessa higienização ridícula e dessa tentativa patética de transformar estádios em arenas, porra, que merda é arena?, que o futebol brasileiro virou essa coisa infestada de gente babaca metida a importante, very importante pessoas, e que, se houver um deus ludopédico e justo ele for, tomara que nunca mais ganhe picas — exceção feita, evidentemente, à Portuguesa, que é outro papo.

Deixamos o Centenário assim que o herói da noite, o goleiro Fabián Carini, bateu o dele, marcou, foi para o gol e catou o outro, levando o Peñarol para a decisão do torneio patrocinado pelo urso polar de buggy, decisão que nem sei quando será e não importa, porque mal Carini tinha levantado para comemorar, a barra tricolor já se erguia para cantar na derrota, aquele canto do “fumamos um panetone”, expressão realmente muito pouco provável, mas foi o que entendemos na hora, e saímos pisando em copos descartáveis, garrafas plásticas, bitucas de cigarro, rojões estourados, papel picado molhado, para ganhar o parque iluminado pela lua, a madrugada, o caminho da casa provisória. A pé, até encontrar um táxi, que no fim sempre aparece.

Pobres los que no lo sienten, estava escrito numa das 114 faixas estendidas do lado de lá — eu contei mais ou menos, não sou tão louco assim, podiam ser 120 ou 110 as mensagens carboneras, e outras tantas estavam do lado de cá, na Colombes, mas essa aí me chamou a atenção.

Pobres los que no lo sienten.