Blog do Flavio Gomes
Brasil

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SÃO PAULO (não aguento) – Não tenho o hábito de falar da minha vida pessoal aqui, mas algumas vezes isso se faz necessário. Perdi minha sogra na última terça-feira, vítima de aneurisma cerebral. Foram alguns dias de muita tristeza e agonia, era uma pessoa queridíssima, a quem eu adorava. Mas faz parte, todos vamos um […]

SÃO PAULO (não aguento) – Não tenho o hábito de falar da minha vida pessoal aqui, mas algumas vezes isso se faz necessário.

Perdi minha sogra na última terça-feira, vítima de aneurisma cerebral. Foram alguns dias de muita tristeza e agonia, era uma pessoa queridíssima, a quem eu adorava. Mas faz parte, todos vamos um dia etc e tal.

Acabei cuidando das questões relativas a velório e cremação do corpo, e graças à ajuda de um amigo da irmã da minha sogra, que trabalha com serviços funerários, não tive tantos problemas. Em São Paulo, a morte é monopólio do município, que se encarrega de transporte de corpos para cemitérios e crematório, este igualmente municipal. Há uma burocracia necessária, claro, e fui muito bem atendido em todas as instâncias pelos funcionários públicos que atuam numa área delicada e sensível.

Como responsável pelos trâmites, meu nome e endereço foram fornecidos ao Serviço Funerário, o que é muito natural.

Cheguei em casa agora, 23h da sexta-feira. Na caixa de correio, um telegrama, algo que me deixou intrigado. Quem ainda envia telegramas?

A vereadora Edir Sales manda. Com base eleitoral na Zona Leste da cidade, por onde raramente passo, integrante da bancada do PSD (recém-criado pelo prefeito Gilberto Kassab à base, entre outras coisas, de assinaturas falsas), partido no qual não voto e jamais votarei, a vereadora, simpática e atenciosa, escreveu: “Solidarizo-me neste momento de dor e saudade. Que Deus lhe dê forças para superar esta perda irreparável”.

Uma mensagem dessas tem pouca chance de dar errado. A não ser que eu odiasse minha sogra, claro, o que não é o caso. É evidente que estamos todos passando por momentos de dor e saudade, e que a perda é irreparável. A vereadora intuir que eu, um ateu convicto, tenha orado a Deus ou dele lembrado nos últimos dias também é aceitável. Quase todo mundo acredita em Deus, ou num deus, ou em vários, ou em um monte de coisa. Eu não acredito em muitas, exceção feita a duendes, druidas e extraterrestres, e a eles não costumo recorrer nem nos bons, nem nos maus momentos. Mas vá lá, a menção a Deus também tem pouca chance de dar errado apesar de vivermos num Estado laico.

O que deu errado, no caso da solícita vereadora Edir Sales, é que não me comovi minimamente com seu telegrama. Antes, fiquei puto e indignado. Puto porque, pela tabela dos Correios, este telegrama custou aos cofres públicos R$ 8,80. Não acho correto que o município gaste R$ 8,80 para que uma vereadora se solidarize comigo, tendo a mais absoluta certeza de que ela nunca ouviu falar da minha sogra, de mim ou de qualquer membro da minha família. E a mais absoluta convicção de que ela não faz a menor ideia de que este telegrama foi enviado, porque isso é coisa automática, algum assessor deve receber listas diárias de defuntos e ganha um salário, que eu pago, para enviar telegramas a famílias entristecidas. Pensei em telefonar para seu gabinete, não para agradecer, mas para perguntar se ela sabe quem sou eu, ou quem é minha sogra. Não o fiz porque hoje é feriado e o expediente no Palácio Anchieta já terá terminado a esta hora da noite.

Indignado, porque evidentemente eu e todo e qualquer cidadão que preenche a papelada referente à morte de um parente ou amigo passamos a fazer parte do cadastro de otários da vereadora e, muito provavelmente, do partido do prefeito. Afinal, quem mais tem acesso aos dados do Serviço Funerário Municipal a não ser a Prefeitura? E quem é que autorizou a Prefeitura a passar meus dados a um partido político? E quem é que autorizou a vereadora Edir Sales a usar meu nome e endereço para o que quer que seja?

Vereadora Edir Sales, se a senhora um dia vier a ler isso, saiba que dispenso sua atenção falsa e mentirosa. Saiba que considero um acinte a senhora usar meus dados pessoais para fingir que está preocupada com a perda irreparável na minha família. Saiba que jamais votarei na senhora. E saiba, sobretudo, que reputo um desrespeito inominável utilizar a morte da minha sogra para levar a cabo seu medíocre apostolado político.

Quanto a mim, gostaria de saber como posso fazer para devolver aos cofres do município os R$ 8,80 que a senhora gastou em meu nome.