Blog do Flavio Gomes
Gomes

TRINTA

SÃO PAULO (e contando) – Eu lembro do título: “A importância de um bom técnico”. Bom título, preciso, direto, não deixa muitas dúvidas. Um bom técnico é importante. Não há dúvidas quanto a isso. Em duas linhas, preencheu uma coluna do jornal e lá se foi o texto, até o pé, elogiando José Poy, o bom técnico. […]

SÃO PAULO (e contando) – Eu lembro do título: “A importância de um bom técnico”. Bom título, preciso, direto, não deixa muitas dúvidas. Um bom técnico é importante. Não há dúvidas quanto a isso. Em duas linhas, preencheu uma coluna do jornal e lá se foi o texto, até o pé, elogiando José Poy, o bom técnico. Sem assinatura, mas era meu, e eu achava que era bom.

No metrô, vi um cara lendo o jornal. Casualmente estava na mesma página do técnico importante, e portanto havia alguma chance de ele estar lendo o que escrevi. Podia estar lendo os outros, também, mas não se deve descartar a possibilidade de ter sido atraído por aquele título, que falava de um técnico e de sua importância. Talvez ele mesmo fosse um técnico de alguma coisa, ou desejasse sê-lo. Em eletrônica, farmácia, gestão contábil, telecomunicações, nutrição, mamografia, próteses dentárias, abreugrafia, medicina nuclear, revelação & ampliação. Fosse ele um técnico, ou desejasse sê-lo, claro que concordaria com a assertiva daquele título, a importância de ser bom, pode ter se identificado, pode ter feito uma autocrítica, será que sou bom, afinal?, o jornal diz que é importante ser um bom técnico, jornal sabe das coisas.

Eu estava de pé no vagão, indo para a faculdade num complexo sistema de baldeações de linhas, trens e ônibus, mas fiquei ali, ao lado do sujeito, esperando por algum sinal de que ele estava lendo o que eu tinha datilografado no dia anterior em laudas amareladas de papel jornal em cujo cabeçalho era necessário preencher alguns campos como a data, a editoria, o autor, a retranca, o tamanho, e as instruções muito claras: 70 toques por linha, espaço duplo para o revisor fazer suas anotações. Qualquer sinal, um meneio, um olhar de esgueio para o lado, talvez procurando quem também concordasse com ele e com o jornal.

Ao tirar o papel da velha Remington na noite anterior, olhei para aquilo como se olha para o Santo Graal, o pergaminho da sabedoria, as escrituras sagradas, ali via meu futuro e todos os próximos dias da minha vida, e não me importei muito com a indiferença dos outros naquela enorme redação barulhenta, quente e esfumaçada, com um gigantesco mapa múndi na parede de fundo encimado por relógios marcando a hora de São Paulo, Londres, Nova York e Moscou. Para aqueles repórteres, redatores e editores concentrados em suas próprias laudas, elas já não eram mais nada de especial, apenas a conclusão de mais um dia de trabalho, suas laudas saíam dos rolos das máquinas vigorosamente e eram imediatamente levadas pelos contínuos à oficina onde linotipistas transformariam suas letras, palavras e frases em blocos de chumbo, que de lá seguiriam para o setor de clichês, que por sua vez embrulhariam os blocos de chumbo nas laudas manchadas de tinta com elásticos, e de lá elas seguiriam para os gráficos que disporiam os blocos de chumbo um ao lado do outro como num quebra-cabeças, seguindo a diagramação, e os blocos se transformariam em chapas tipográficas que seguiriam para as rotativas onde virariam páginas e, de madrugada, seriam transportados em Kombis para as bancas da cidade.

O sujeito no metrô tinha ido à banca naquele dia, possivelmente se interessou por alguma coisa na primeira página, talvez tivesse o hábito de comprar aquele jornal de logotipo azul todos os dias, e enquanto seguia para seu trabalho, ou de volta para casa, é impossível determinar, abriu o jornal na página onde alguém falava sobre a importância de um bom técnico, e este, anônimo, era eu, e estava ali ao seu lado, torcendo para que ele lesse, para que concordasse, ou discordasse, para que chegasse em casa e, de poucas palavras, enquanto a mulher colocava a mesa para o jantar de todos os dias, comentasse com ela que era importante ser um bom técnico, que por isso mesmo iria procurar um curso no Senac ou no Senai, o jornal dizia que isso era importante, devia ser, pois. Não importava que o técnico em questão era um técnico de futebol, que treinava a Portuguesa, isso era de somenos, a afirmação do título, essa sim devia ser levada a sério. É importante ser um bom técnico, disse o sujeito agora já decidido, raspando o prato e entornando o último gole da cerveja gelada que sua mulher sempre colocava no congelador meia hora antes de ele chegar do trabalho, tomando a decisão definitiva de, no dia seguinte, tratar de ser um bom técnico na vida.

Era uma segunda-feira, dia 19 de abril de 1982, e pela primeira vez alguém há de ter lido alguma coisa que escrevi.