Blog do Flavio Gomes
Brasil

CINISMO E INUTILIDADE

SÃO PAULO – A vida nestes tempos é muito estranha. Há um mundo paralelo, este aqui onde você me lê. Muitos físicos e cientistas defendem que uma outra dimensão espaço-tempo é possível, pode ser descrita com fórmulas complicadas que fogem à compreensão de cérebros mal treinados. Os fatos de Santa Maria, por sua vez, são […]

SÃO PAULO – A vida nestes tempos é muito estranha. Há um mundo paralelo, este aqui onde você me lê. Muitos físicos e cientistas defendem que uma outra dimensão espaço-tempo é possível, pode ser descrita com fórmulas complicadas que fogem à compreensão de cérebros mal treinados.

Os fatos de Santa Maria, por sua vez, são de fácil compreensão e bem reais. Uma boate com alegada capacidade para mais de mil pessoas (os bombeiros, baseados na metragem da casa, disseram depois que não deveriam entrar mais de 691) com apenas uma saída estreita e distante de quem não estivesse na porta da rua, sem janelas e revestida de material inflamável e tóxico. Jamais poderia ter sido aberta. Mas foi, porque recebeu um alvará de funcionamento um dia. E também um laudo do corpo de bombeiros, que estava em processo de renovação.

São criminosos aqueles que concederam o alvará e os que assinaram o laudo liberando a casa. Assim como criminosos são o arquiteto que a projetou e o engenheiro que executou a obra. E os proprietários, também. Não consigo entender como tantas pessoas envolvidas com a abertura de uma casa noturna possam ter sido capazes de colocá-la em funcionamento dessa maneira. Uma ratoeira. A casa não atende os requisitos mínimos de segurança que não só a lei exige, como também o bom-senso. Não é possível que ninguém — num grupo que tem um funcionário da Prefeitura que dá o alvará, um bombeiro que assina o laudo, um arquiteto que projeta, um engenheiro que constrói, proprietários que ganham dinheiro com o negócio — tenha, em algum momento, se perguntado: e se acontecer algo? Por onde saem as pessoas? Quais os riscos? Por que não havia iluminação de emergência? Por que os extintores não funcionavam? Por que permitir a entrada de 1.500 pessoas onde cabem 691? Pagou-se propina? A ideia foi economizar? Ignorar as leis, as recomendações? Como, me pergunto, alguém é capaz de conceber um lugar assim e abri-lo, enchê-lo de jovens, com mais do que o dobro de sua capacidade?

A cadeia de pessoas para ser responsabilizada não é pequena. E passa, claro, pela idiotice explícita da banda com seu show pirotécnico. Como é que alguém pode disparar artefatos que produzem fogo, faísca e fagulhas num ambiente fechado, seja ele qual for, tenha ele o tamanho que tiver?

É fácil, pois, descrever as causas do acidente e compreender por que ele aconteceu. Não há muita dificuldade para entender que o descaso, a negligência, a ganância, a burrice, isso tudo junto causou o incêndio e as mortes. Não há como fiscalizar tudo. Não há como fiscalizar a ausência de caráter das pessoas, nem seu grau de imbecilidade. Não são os governos que devem ser culpados nesse caso. São as pessoas, muitas delas abrigadas em governos, que não cumpriram com a obrigação maior de qualquer ser humano: a de ser uma pessoa de bem.

Gente que conhece os caminhos tortuosos da burocracia brasileira, como meu amigo André Barcinski, relata a crueldade do sistema, que acaba levando o mais puro dos monges a perder a paciência para abrir um negócio qualquer — e, em algum momento, a compostura, transformando-se num corruptor. Porque é quase uma regra nacional: o serviço público é contaminado pela corrupção e infestado de corruptos.

Mas há também aqueles que abreviam esses caminhos e fazem ligação direta com a corrupção. Pagam por fora, conseguem seus alvarás, não cumprem lei nenhuma e foda-se. Igualam-se ao pior dos corruptos. Você, certamente, conhece um.

Mas, insisto, não há como fiscalizar o caráter das pessoas. Eu sempre ouvi essas histórias, depoimentos de pessoas que afirmam, com todas as letras, que “se não pagar, não consegue”. Não consegue abrir um bar, um café, uma oficina, uma loja. Mas na minha santa ingenuidade, sempre imaginei antídotos para os corruptos. Eu, por exemplo, se fosse abrir um bar, requisitaria a legislação e cumpriria à risca cada item exigido. No dia da vistoria definitiva, montaria câmeras, contrataria cinegrafistas e acompanharia o fiscal metro a metro em sua fiscalização, com a lei numa mão e um microfone na outra.

Ninguém faz isso. As pessoas se rendem ao que consideram inevitável. Alguém vai me pedir propina. Alguém vai me extorquir. E a roda da putaria não para de girar.

Desviei-me do assunto, eu queria falar destes tempos estranhos. Já vou terminar.

Como muita gente faz hoje em dia, segui os acontecimentos de ontem por todos os meios disponíveis, entre eles as redes sociais — Twitter e Facebook. E é, realmente, estarrecedor como este mundo virtual abriu as portas para que gente nem tão virtual assim exponha o pior do ser humano. Ferramentas geniais — considero todas essas coisas que a internet criou geniais, espantosas —, que poderiam ser tão úteis e ricas, acabam se transformando em megafones propagadores da iniquidade e da demência. O blogueiro Marcel Dias, do “Diário do Nordeste”, escreveu sobre a inutilidade que tomou conta das redes sociais e de como tal inutilidade se mostrou clara ontem. “Seja qual for a rede social, repleta de pessoas, o comportamento do organismo funcionará da mesma forma como funciona aqui, fora dos computadores. O meio virtual apenas ‘digitaliza’ o caráter das pessoas. Por maior que seja o fingimento, o comportamento apresentado é real”, diz Marcel. Na mosca. Quem tiver estômago pode comprovar o que escreve o blogueiro nesta página do Orkut, outra rede social (tomara que já tenham eliminado o link, não é possível que o Google, dono desse negócio, permita que isso se mantenha no ar). Está tudo fora de controle.

Essa contaminação do mundo real pelo mundo virtual, talvez essa nova dimensão espaço-tempo que os cientistas descrevem com equações e algoritmos quando bastaria visitar uma lan-house, se dá em todas as frentes e desconfio que há pessoas que já não concebem mais a vida sem ele. Uma geração que definhará sem uma conexão wi-fi, sem um iPhone, sem um botão de “like”.

E isso é perigoso. Essa geração, hoje, se senta diante de um teclado e comete insanidades como a do perfil do jornal “O Estado de S.Paulo” no Twitter ontem, que em meio à contagem dos mortes conclamava seus seguidores a procurarem perfis das vítimas no Facebook.

Difícil imaginar cinismo maior. Difícil imaginar tamanha desconexão com a realidade. Há quem chame isso de “jornalismo participativo”, ou “interatividade”. O mundo em que tudo se compartilha e se curte.

Acho apenas que estamos ficando todos loucos.