Blog do Flavio Gomes
Gomes

PLACAR

SÃO PAULO (quando começa a fazer um quarto de século…) – Eu tinha 12 anos quando comprei pela primeira vez, com meu dinheiro, uma revista na banca. Foi a edição 333 da “Placar”, ou “de”, como se diz na Abril, algo que fui descobrir anos depois, muitos anos depois, no dia em que entrei pela […]

Capa da "Placar" 333, a primeira que comprei na banca
Capa da “Placar” 333, a primeira que comprei na banca

SÃO PAULO (quando começa a fazer um quarto de século…) – Eu tinha 12 anos quando comprei pela primeira vez, com meu dinheiro, uma revista na banca. Foi a edição 333 da “Placar”, ou “de”, como se diz na Abril, algo que fui descobrir anos depois, muitos anos depois, no dia em que entrei pela primeira vez na redação, que ficava num prédio na região da Berrini, numa rua que tinha meu sobrenome.

Achei aquilo um bom sinal, uma tolice sem tamanho para disfarçar o nervosismo enquanto esperava o elevador vestindo um blazer cinza yuppie metido a surrado, camisa branca, gravata comprada em brechó e tênis All Star. Eu era metido a moderninho, e vinha de um jornal onde todos eram moderninhos.

Mas era meu primeiro dia no trabalho com o qual sonhava desde aquela edição 333 comprada em 1976, e só lembro do número porque 333 não é tão difícil assim de guardar.

26 de janeiro de 1988. Descobri a data por acaso nesta semana, não sou tão maluco assim. Estava revirando um baú no escritório atrás de uma dessas pastas que tem plásticos vazia, para arquivar as contas do ano que está começando, quando dei com outra pasta com uma etiqueta na capa: “Placar, 26 de janeiro a 28 de fevereiro de 1988”. Nela, cuidadosamente recortadas e arquivadas por data, todas as palavras publicadas na (“em”) “Placar” que saíram da minha cachola naquele mês de 1988, 25 anos atrás.

Desde aquela edição 333, nunca mais deixei de comprar “Placar”, e não é clichê dizer que “esperava ansiosamente” pelas terças-feiras de manhã, para colocar as mãos na revista. Esperava ansiosamente, mesmo. Assim como esperava ansiosamente pelo dia em que estaria trabalhando lá, escrevendo sobre futebol, minha grande paixão.

Foi pensando em trabalhar na “Placar” que passei os anos seguintes àquela edição 333, entrei na faculdade, me formei, comecei a dar minhas caneladas, até o dia em que, exatamente uma década depois de comprar a edição 333, já agoniado por ainda não ter sido descoberto pela revista, decidi tentar. Sentei-me à máquina e escrevi uma carta para o diretor de redação, Juca Kfouri. Uma carta. Que continha um erro grave de português, “intensão” em vez de “intenção”. Eu, se recebesse uma carta de alguém com a intenção de trabalhar na minha revista com esse S no lugar do cê-cedilha, teria jogado no lixo.

Mas ela não foi jogada no lixo. Quem a leu, e acho que foi o Juca, deve ter achado engraçado aquele moleque se oferecer com tanta presunção. Na carta, eu dizia que queria trabalhar na “Placar”, porque era leitor da revista havia dez anos, e, basicamente, escrevia bem e entendia de futebol. “Sou bom”, era o que eu afirmava. Assim, não havia razão nenhuma para não me contratarem. Só faltou terminar com um “quando começo?”.

Enfiei a carta num envelope desses de tamanho pequeno e esqueci de colocar o remetente, assim como um número de telefone. Mesmo se passasse pelo “intensão”, portanto, o destinatário não teria como me encontrar, e assim o destino daquela cantilena teria mesmo de ser o lixo. Mas não foi. O envelope tinha o timbre da SBPC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, onde eu trabalhava na época fazendo programas científicos de rádio para a Cultura AM.

Hoje, tanto tempo depois, intuo o caminho que aquela carta percorreu. Deve ter chegado ao responsável pelas cartas dos leitores, era por carta que leitor falava com uma revista antigamente, embora endereçada pessoalmente ao Juca. Generoso, o estagiário que a leu pela primeira vez deve tê-la encaminhado para o diretor da revista. Que, possivelmente, estava sem nada de muito importante para fazer naquela hora, talvez tivesse acabado de pegar uma café para abrir a correspondência do dia, e deu de cara com aquilo na sua mesa, e leu.

Por alguma razão que jamais saberei qual foi, Juca passou a carta para seu chefe de redação, Carlos Maranhão, que igualmente teve a chance de jogá-la no lixo. Não deviam ser muito raras as cartas de leitores se dizendo capazes de trabalhar na “Placar”. Mas, também por alguma razão que jamais será conhecida, ele achou interessante o que leu e resolveu entrar em contato comigo. Mas como? Não havia um endereço, nem um telefone. Mas havia o timbre da SBPC no envelope, que milagrosamente sobreviveu à ação das mãos do estagiário que o abriu sabe-se lá como, rasgando o próprio e poupando-o igualmente do lixo. A carta foi parar na mesa do Juca com o envelope junto.

O timbre da SBPC era a única pista, pois, e imagino que Maranhão tenha procurado o telefone na lista, e se ligou caiu na sede que ficava numa outra casa, não aquela onde fazíamos o programa de rádio. Quem atendeu poderia simplesmente ter dito que não, não existe nenhum Flavio aqui, o negócio do programa de rádio era meio marginal às atividades principais da SBPC, mas milagrosamente, de novo, alguém deve ter lembrado que havia outra casa, e outro número de telefone, e lá um Flavio, e assim, algumas semana depois de ter colocado a carta no correio, atendi a uma ligação na casa do programa de rádio dizendo SBPC, boa tarde.

Era o Maranhão querendo falar comigo. Espantado, ouvi calado as duas primeiras reprimendas do redator-chefe da revista onde sonhava trabalhar: 1) intenção é com cê-cedilha; e 2) quando você escrever para alguém, lembre-se de fornecer algum contato, um meio de encontrá-lo.

Naquela mesma semana, tinha mandado meu currículo para a “Folha”, que procurava um repórter para Educação e Ciência. O salário era bom e, embora sem muito entusiasmo, eu tinha alguma chance por já ter dois anos de atuação nessa área, na SBPC. Tinha boas fontes em universidades e institutos de pesquisa. Fui chamado para uma entrevista, mas marquei uma visita à “Placar” para o mesmo dia, pela manhã. Eles queriam me conhecer, embora tivessem deixado claro que não havia vaga nenhuma no momento. Fui à revista pela manhã, me encomendaram uma matéria para ver como eu me sairia, e ao jornal à tarde, onde fiz de tudo para não ser aprovado na entrevista — falei muito mal da “Folha”, não queria trabalhar lá, achava que convenceria os caras na “Placar” a me contratarem mesmo não havendo vaga alguma.

No dia seguinte, recebi um telegrama do jornal informando que eu tinha sido o escolhido para a função de repórter de Educação e Ciência, fiquei desesperado, liguei para a “Placar” e o editor que me atendeu, Tonico Duarte, me disse para aceitar, claro, porque não tinha lugar mesmo na revista. Mais vale um pássaro na mão… recitou, para minha profunda tristeza, e fui trabalhar na “Folha” em novembro de 1986.

Um ano e pouco depois abriu uma vaga em Esportes, na pauta, e fui. Tinha esquecido da “Placar”, nunca mais entraram em contato, havia mergulhado de cabeça no dia a dia do jornal, passei a amar aquilo, até que um dia assinei uma matéria tola sobre uma festa brega da Federação Paulista de Futebol e no dia seguinte recebi, na “Folha”, outra ligação do Maranhão. Você está em Esportes agora, que bom, olha, abriu uma vaga aqui.

Não perguntei nem qual era o salário. Pedi demissão da “Folha” e fui atrás do sonho da criança que corria às bancas às terças-feiras, e no dia 26 de janeiro subi pela primeira vez naquele elevador do prédio da Geraldo Flausino Gomes não para pedir emprego, mas para começar nele, para trabalhar na revista da minha vida. Minha figura patética de blazer e gravata não passou despercebida, meus novos colegas não perdoaram aquele figurino yuppie da Barão de Limeira, fui vítima, dias a fio, das gargalhadas de amigos inesquecíveis como Ari Borges, Milton Bellintani, Sergio Kraselis, Marcelo Duarte, Anjinho, Mario Sergio Della Rina, Sergio Berezovsky, lendas do jornalismo até hoje, professores eternos.

Essa passagem por “Placar” durou exatamente um mês, a revista da minha vida estava mal das pernas, havia planos de transformá-la numa publicação voltada a games, o clima estava meio pesado, não era essa a revista que eu tinha comprado na banca aos 12 anos, e dias depois desse 26 de janeiro de 1988 meu editor de Esportes na “Folha” ligou para me chamar de volta, a editoria tinha virado uma zona, preciso de você, o que você quer para voltar?, te coloco em outro horário (a pauta era triste, tinha reunião às sete da manhã), olha, tem uma corrida de Fórmula 1 no Rio no mês que vem, te coloco na cobertura…

Decidi voltar, saí de “Placar” (em questão de horas, ali, deixei de falar “na ‘Placar'” e adotei o abrilês “em ‘Placar'”), ficaram até zangados comigo, pedi desculpas e semanas depois estava em Jacarepaguá para cobrir meu GP do Brasil de F-1, e o resto é história, a minha história.