Blog do Flavio Gomes
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DIÁRIO DE UMA BUSCA (1)

SÃO PAULO (querência) – Tudo começou quando meu contato nos arquivos empoeirados do Céu dos Carros, a quem chamo de “Dolglas” por ser um nome que ninguém jamais teria, me colocou no encalço do Twingo que vocês já conhecem. Achei a dona do Twingo, fiquei amigo dela, terei o carro de volta, vocês vão acompanhar […]

gol82SÃO PAULO (querência) – Tudo começou quando meu contato nos arquivos empoeirados do Céu dos Carros, a quem chamo de “Dolglas” por ser um nome que ninguém jamais teria, me colocou no encalço do Twingo que vocês já conhecem.

Achei a dona do Twingo, fiquei amigo dela, terei o carro de volta, vocês vão acompanhar tudo aqui, no ritmo certo, com tranquilidade e critério.

Mas aí aconteceu uma outra coisa, eu nem sei de devia contar, mas não consigo guardar segredos muito tempo. E para que vocês entendam direitinho, preciso voltar algumas semanas no tempo.

Dia desses, começo do mês, talvez, recebi um e-mail de um leitor perguntando se me interessaria por uma Vemaguet de um amigo dele. Eu sempre me interesso por Vemaguets, mesmo não precisando de mais Vemaguets. Tudo bem, é compulsão que um dia irei tratar com algum psicólogo, talvez quando tiver uns 90 anos, se lá chegar.

Recebo e-mails com ofertas de carros com bastante frequência. A maioria, se eu tivesse dinheiro, compraria na hora. Alguns não me falam ao coração e agradeço a oferta e a atenção. Outros são encrencas ambulantes, é comprar e quebrar. Segundo meus critérios de irresponsabilidade fiscal, vou descartando quase tudo para não me afundar ainda mais na falência iminente.

Mas de vez em quando um carrinho olha para mim através da tela do computador e diz: “Preciso de um dono legal. Não me abandone”. E lá vou eu pelo menos conhecer o carro, o dono, a história, e na pior das hipóteses ganho novos amigos.

Essa Vemaguet se encaixa nessa categoria. Mas alguma coisa além de seu olhar de cachorrinho precisando de uma casa nova me levou a buscar mais informações sobre ela, e eu não sabia bem o quê. São mistérios que não me esforço muito para desvendar. Chamou, vamos ver o que ela quer comigo.

E então, quarta à noite, recebi do leitor um pacotinho de fotos digitais e dois vídeos, e sorri para ela e resolvi conhecê-la pessoalmente. O carro estava perto, em Caieiras, um pequeno município da Grande São Paulo a uns 40 km daqui. Minha quinta-feira estava razoavelmente tranquila, seria até bom pegar uma estradinha para espairecer. O dono parecia ser uma figura ímpar, de apelido Magirus, portanto com o dobro da minha altura, e segundo meu leitor, o que indicou a Vemaguet, um cara legal que eu adoraria conhecer.

Caieiras, OK. Registrado. Se der, vou amanhã à tarde.

Voltemos à noite de quarta. Depois de ver as fotos da Vemaguet, estava fazendo a última ronda pelo Facebook e percebi que “Dolglas” (eu podia ser mais criativo para inventar nomes) estava on-line. Do nada, depois de um gentil boa noite, perguntei a ele se seria possível me ajudar a achar meu primeiro carro, o Golzinho LS 1982 que vendi em 1985. Nem sei por que perguntei isso. Afinal, já estou com o projeto do Twingo Goiabinha em andamento, e sou só um. Do Gol, eu só tinha a placa. Mas era amarela. “Número do chassi?”, perguntou telegraficamente “Dolglas”. “Como vou saber?”, retorqui. Mas me deu um estalo. Pode ser que eu tenha, sim. “Espera aí”, escrevi, e fui ao setor de caixas de sapato do meu guarda-roupa. Nelas, há tesouros. Na segunda caixa, encontrei um envelope plástico e, dentro dele, alguns papéis do Gol. Entre eles, uma nota fiscal de uma revisão feita na revenda Santa Luiza em 1983. Na nota, o número do chassi. Uau. Anotei. Voltei ao computador e mandei a informação para “Dolglas”, que achou graça de eu ter guardada, há mais de 30 anos, uma nota fiscal de uma revisão de 15 mil km.

Tenho, “Dolglas”. Tenho cada coisa que você nem imagina…

Era tarde, e fui dormir com a promessa de “Dolglas” de que assim que abrisse o expediente do Céu dos Carros ele tentaria descobrir.

Quinta-feira cedo, abri meus e-mails. Lá estava uma mensagem criptografada de meu contato no Céu dos Carros. A ficha do Gol. Nome do proprietário, placa atual, endereço. Carro em circulação, segundo a mensagem. Registrado em Caieiras.

Caieiras.

Caieiras?

OK, é apenas uma coincidência, pensei. Eu vou hoje a Caieiras ver uma Vemaguet. Sim, é uma grande coincidência o carro estar registrado na mesma cidade. Grande mesmo. Puxa vida, que coincidência. Caieiras. Anotei o endereço num papel. Apenas para ilustrar, vou inventar um nome de rua: Celestino Turíbio, número tal.

Tomei banho, me vesti e saí. No caminho, telefonei para Magirus, o dono da Vemaguet. De fato, uma figura. Perguntei se podia ir à tarde ver a peruinha, peguei indicações de caminho, era fácil, e antes de encerrar a conversa perguntei: “Seu Magirus, o senhor conhece bem Caieiras?”. Ele, claro, conhecia. “Então, aproveitando o ensejo, o senhor conhece a rua Celestino Turíbio?”. “Sim. É a minha rua.”

Na hora, e juro que é verdade, senti um calafrio. Não era possível. Sou misteriosamente atraído por uma Vemaguet, pela qual não teria nenhum interesse especial em condições normais, apenas o interesse de sempre por qualquer DKW, mas ela me chamou a Caieiras, por alguma razão. Na mesma noite em que decido ir a Caieiras resolvo procurar meu Gol, meu primeiro carro, e na manhã seguinte descubro que meu Gol, meu primeiro carro, está registrado na mesma rua da Vemaguet.

Como pode?

Era, realmente, algo inacreditável que estava acontecendo. Fiz o que tinha de fazer e no meio da tarde liguei de novo para seu Magirus e avisei: o senhor vai ouvir hoje a história mais louca da sua vida. Peguei o caminho para Caieiras.

Se eu tivesse de usar uma figura de linguagem, diria que fui de respiração presa de São Paulo a Caieiras. Encontrei o condomínio onde fica a rua Celestino Turíbio (que não aparece no Google Maps, diga-se; a verdadeira, não essa cujo nome inventei) e Magirus me esperava na portaria, com a linda Vemaguet sorrindo para mim. Fomos até sua casa e contei toda a história. “Vamos lá já”, ele falou. A casa do suposto dono do meu Gol 82 ficava a não mais que 300 metros da casa do Magirus.

Paramos diante dela e a garagem estava vazia. A campainha não funcionava. Batemos palmas, ninguém apareceu. Vamos embora, Magirus. Um dia você passa aí e tenta descobrir alguma coisa. Fizemos a volta, mas quando passamos diante da casa de novo havia um carro. Um carro novo, não lembro qual. Paramos de novo. Batemos palmas, uma jovem saiu na varanda. Perguntei se ali morava Fulano de Tal, o dono do Gol cujo nome aparecia na ficha do Céu dos Carros. “Ah, ele morava aqui, sim, mas se mudou há uns nove anos. Não sei onde anda, não. Mas sei que ele se separou e a ex-mulher dele mora ali perto do mercadinho do Paulinho. Numa casa azul, acho.”

Olhei para Magirus, ele olhou para mim, e falou: “Vamos achar esse Fulano de Tal”. Não preciso dizer que Magirus já virou um de meus melhores amigos, e que comprou a ideia da busca com enorme alegria. Não é para menos… Ex-piloto, correu nos anos 70 de Divisão 1 de Fusca, conhece toda a turma dos anos 60, Bird, Marivaldo, Gallina, Moco, foi jogador de basquete da Portuguesa (sim, da Lusa!), coleciona e restaura bicicletas antigas, tem a Vemaguet e uma Belina, e está meio ralado de um tombo de moto que tomou outro dia. Aos 68 anos. Um garoto de 68 anos, com o dobro da minha altura e o triplo da minha energia.

Lá fomos nós atrás da casa azul perto do mercadinho do Paulinho — nome fictício, também. Encontramos uma. Uma senhora nos atendeu e quando perguntamos se ela conhecia Fulano de Tal, ela disse que sim, que ele era parente do Bidu da Escolinha. E fomos à casa do Bidu da Escolinha, e a esposa dele nos atendeu, e disse que sim, claro que conhecia Fulano de Tal, casado com sua cunhada. “Mas não se separaram?” Já tinham se reconciliado. A casa dele fica ali, depois da subida, após a descida, antes do muro, está em construção.

E fomos seguindo as indicações da senhora Bidu da Escolinha até encontrar a casa. Nenhum sinal do carro, nem de Fulano de Tal. Depois de palmas insistentes, aparece a filha de nosso alvo. O pai não estava. Mas eu já tinha um telefone, e disse à menina que ligaria mais tarde, apenas para que ela já avisasse Fulano de Tal, para que ele não estranhasse um telefonema de um estranho. Antes de ir embora, perguntei: “Seu pai tem um Gol assim-assado?”. “Ih, ele vendeu faz tempo. Faz anos!”.

É a última informação disponível. Fulano de Tal vendeu o Gol, mas ele ainda está em seu nome. De acordo com “Dolglas”, do Céu dos Carros, em circulação, com todas as taxas em dia. Tem um valor aberto em multas, o que significa que o cara que comprou o Gol de Fulano de Tal precisa tomar mais cuidado, e passar o carro para seu nome.

Ou para o meu.

Não consegui falar com Fulano de Tal à noite, o número não atendeu. Tento de novo hoje durante o dia. Se o Golzinho ainda existe, eu vou encontrá-lo. Tenho certeza que essa Vemaguet me chamou até a rua onde mora em Caieiras para isso.

Chamou, tá chamado. Vou te achar, garotão.