Blog do Flavio Gomes
Gomes

BREVES HISTÓRIAS DE VIAGEM (2)

RIO (seguindo) – Eu tinha programado minhas férias até Eisenach, e de lá não sabia direito o que iria fazer. Na verdade, já tinha mudado o roteiro antes, trocando Dresden por Leipzig, comprei a passagem de trem, e então o amigo Luciano Pinho, de Berlim, me manda uma mensagem: tem encontro de Wartburg em Eisenach […]

RIO (seguindo) – Eu tinha programado minhas férias até Eisenach, e de lá não sabia direito o que iria fazer. Na verdade, já tinha mudado o roteiro antes, trocando Dresden por Leipzig, comprei a passagem de trem, e então o amigo Luciano Pinho, de Berlim, me manda uma mensagem: tem encontro de Wartburg em Eisenach no fim de semana.

Puta merda, vou perder esse negócio. Paciência, ainda tinha um sábado em Leipzig, não ia perder a passagem, engoli o choro. E no domingo de manhã fui para a estação — uma das maiores da Europa, parece, tem um shopping subterrâneo com 140 lojas, linda de morrer –, abri o celular no trem e tinha uma mensagem no Facebook de um amigo da Noruega, Jon Tønnesen: pode vir que hoje tem passeio às 15h e o encontro só termina à noite. Perguntou a hora da chegada e falou que iria me buscar com um Wartburg vermelho.

A viagem foi rápida, logo depois do almoço desembarquei na pequena estação de Eisenach e já na porta para a rua encontrei Jon, sua mulher Christine e um Wartburg vermelho que no dia anterior tinha sido premiado como o melhor do encontro daquele modelo. O carro era de arrepiar.

Nunca tinha visto o Jon, a gente tinha trocado algumas mensagens antes, mas existe um negócio chamado simpatia que vale aqui, na Alemanha, na Noruega e em Marte. Rapidamente nos tornamos os melhores amigos desde sempre, babei no carro, enchi o cara de perguntas, passamos no meu hotel — Logotel, na Karl-Marx strasse, claro — e fomos para o parque onde ainda havia uns 300 carros, vindos de 17 países diferentes.

(Uma das histórias: Jon ganhou seu primeiro Wartburg quando tinha 15 anos. Ficou três ajeitando o carrinho, até o dia em que tirou carta e pôde usá-lo. Esse carro foi vendido, mas ele sabe onde está. Com um velho doido que está pedindo uma fortuna por ele, mesmo estando em petição de miséria. Jon disse que do jeito que o homem é duro na queda, vai ter de esperar ele morrer para pegar o carro de volta. Falei para ele fazer isso, se não tiver outro jeito. Mas para não perdê-lo de vista.)

Pombas, um encontro de Wartburg! Jon trouxe o carro numa carreta, rebocada por um motorhome. Foram mais de 1.200 km desde a cidade onde ele e sua família vivem, perto de Oslo. Fiquei que nem bobo olhando tudo que fosse possível, conversando com malucos de todos os cantos, incluindo os velhinhos ingleses que vieram rodando com seus carros com volante do lado direito.

[bannergoogle]Logo de cara Jon me apresentou a Enrico Martin, o cara que organiza o encontro, garoto, menos de 40 anos, figura espetacular que entre outras coisas construiu uma limusine Wartburg e me levou para dar uma volta. O encontro é um barato. Clima de camaradagem total, sem frescuras, sem clubes, apenas um bando de loucos que gostam da mesma coisa: aquele carrinho fabricado em Eisenach, que leva o nome do castelo onde Martinho Lutero traduziu o Novo Testamento para o alemão e fincou as bases do protestantismo.

Às três da tarde começou o passeio pelas estradinhas locais, mais de 200 carros — estou chutando, porque saímos no meio da fila e não sei quantos havia atrás — passando por pequenas cidades no entorno cheias de gente nas ruas acenando e sorrindo. Naquela região da Turíngia, todo mundo tem alguma coisa a ver com os Wartburg. A fábrica, quando fechou, tinha quase dez mil funcionários. Eisenach tem 45 mil habitantes. Tudo girava em torno da gigantesca AWE — Automobilwerk Eisenach.

A história da indústria automobilística em Eisenach começa em 3 de dezembro de 1896, quando o engenheiro Heinrich Ehrhardt fundou a Fahrzeugfabrik Eisenach AG para fabricar carruagens para carregamento de munição — ordem do ministro da Guerra do império. Erhardt logo adquiriu a licença da francesa Decauville para fazer automóveis, e em dezembro de 1898 o primeiro carro “made in Eisenach” saiu da fábrica. O problema é que carro dava prejuízo, e a fábrica seguia fazendo canhões e bicicletas para se sustentar.

Foi só em 1904 que nasceu a marca Dixi em Eisenach, e logo depois vieram pequenos caminhões. Aí estourou a Primeira Guerra e toca voltar a fabricar armamentos, e quando o conflito terminou, em 1918, os alemães estavam quebrados. A companhia foi  vendida em 1921, e em 1927 comprou a licença do Austin-Seven, da Inglaterra, que passou a ser produzido como Dizi 3/15. Então, em 1928, a BMW comprou tudo.

A BMW era uma gigante que nasceu fazendo motores para aviões em Munique, mas depois da guerra foi proibida pelos aliados de continuar produzindo qualquer coisa que pudesse realimentar o espírito bélico alemão. Então, começou a fabricar motores para caminhões, barcos e motos. Em Eisenach, tacou a marca BMW no pequenino Dixi e assim começou sua história como fabricante de automóveis.

Com a ascensão de Hitler ao poder, a BMW voltou às atividades aeronáuticas em Munique, e em 1941 a produção de automóveis foi interrompida em Eisenach para que as instalações pudessem ser usadas para fabricação de motos militares. Quando a Segunda Guerra terminou, em 1945, a fábrica estava toda arrebentada. O que sobrou deu para fazer panelas e carrinhos de mão. De madeira. Aí, em julho daquele ano, os soviéticos ocuparam Eisenach e decidiram desmontar a fábrica da BMW. Mas antigos funcionários convenceram o comando militar a retomar a produção de carros e motos, depois de mostrar aos novos donos do pedaço cinco BMW 321 completinhos.

Quando a BMW retomou a produção de automóveis em Munique, em 1949, criou-se um impasse. Em Eisenach, carros e motos com a mesma marca continuavam a ser produzidos, com projetos pré-guerra. Assim, os alemães orientais rebatizaram a fábrica como EMW (Eisenach Motorenwerke), trocaram o azul do logotipo original por vermelho e tocaram a vida. Motos e carros BMW passaram a se chamar EMW.

Foi só em 1952 que a fábrica foi nacionalizada e passou a fazer parte da IFA, a associação industrial do governo para construção de veículos da DDR — Industrieverband Fahrzeugbau, no original, sediada ali do lado, em Chemnitz. E, então, optou-se por produzir um carrinho pequeno, compacto, econômico, baseado no DKW F9 de 1939. Assim chegaram a Eisenach os motores dois tempos. Ufa.

Um certo Martin Zimmermann, diretor da companhia, pegou o touro a unha e, a partir do F9, começou a desenvolver o Wartburg, que foi apresentado em 1955 na sua primeira versão, o modelo 311. O bichinho fez sucesso, tinha nove versões diferentes de carroceria (incluindo o cupê esportivo 313 e as peruas), passou a ser exportado para países vizinhos e arrebentou a boca do balão. Em 1966 o 311 foi substituído pelo 353, o quadradinho que se manteria praticamente igual até o fim da história, sempre com motor dois tempos, três cilindros, igual ao dos nossos DKWs — no fim das contas, pai de todos eles.

Em 1988 a AWE, que fabricava o Wartburg, resolveu descontinuar os motores dois tempos e colocou nos seus carros um motor quatro tempos 1.3 fabricado pela Volkswagen, com quem negociava desde 1983, para tentar ganhar mercado fora e dar uma sobrevida ao seu único produto — já que no resto da Europa motores dois tempos já não atendiam as normas de emissão de poluentes. No ano seguinte, caiu o Muro de Berlim. Os alemães orientais não queriam mais saber de Wartburgs e Trabis, foram apresentados ao feérico mundo ocidental com seus carrões modernos com catalisadores, e no dia 10 de abril de 1991 a fábrica fechou.

Mas a história de Eisenach com os automóveis não iria terminar assim. Já em janeiro de 1990, dois meses depois da queda do Muro e da dissolução da DDR, a Opel resolveu montar uma fábrica na cidade. Em outubro saiu o primeiro Vectra de sua linha de produção. Depois veio o Corsa. E a Opel segue firme por lá, com dois mil funcionários que já produziram mais de três milhões de veículos desde então.

[bannergoogle]Contei tudo isso para dizer que Eisenach respira automóvel, e que apesar de fechada a AWE não foi abaixo para virar ruínas. Parte do parque fabril foi aproveitado por outras indústrias, e um pedaço da antiga fábrica foi preservado e virou museu.

E é claro que eu tinha ido a Eisenach para ver esse museu, só que ele estaria fechado na segunda-feira. Foi o que o Enrico me disse na noite gelada de domingo, quando ficamos comendo salsicha e seguimos tomando cerveja em quantidades industriais. Mas não tem problema, me tranquilizou. O meu amigo que toma conta do museu abre para você. Só depois de ter essa certeza pude ir para o hotel dormir, e fui levado de volta por um novo amigo, Jan, que tem um Wartburg verde e trabalhou no Ministério da Segurança do Estado da DDR. Sim, ele foi da Stasi. Não é demais pegar carona com um agente da Stasi? Morram de inveja.

Na segunda de manhã peguei um táxi até o parque e cheguei a tempo de ver o encerramento do encontro, com um buzinaço dos quase 80 carros que ainda estavam por lá. Então veio um senhorzinho simpaticíssimo, de nome Matthias Doht, que cuida do museu e vem a ser ex-prefeito da cidade. Trabalhou na fábrica, assim como seu pai e seu avô. Me colocou num 311 azul e branco, 1958, e fomos para a antiga fábrica onde toda essa história está contada num museu lindo, arrumadinho, completo, que tem pelo menos um exemplar de cada carro que saiu daquele lugar, incluindo o último de todos, feito em 10 de abril de 1991, um Wartburg 1.3 vermelho. O último de todos. Eu fico besta com esse instinto de preservação dos alemães. A merda toda indo para o buraco, nove mil pessoas desempregadas, e alguém se lembrou de guardar o último carro.

Esse museu foi aberto só para mim numa segunda-feira. Morram de inveja de novo.

De tarde, deu tempo de ver a casa onde nasceu Bach, outro filho pródigo de Eisenach. No dia seguinte ainda fui conhecer o castelo de Wartburg, um dos pontos turísticos mais visitados da Alemanha por sua beleza e incrível importância histórica — pode-se dizer que as Reformas do cristianismo começaram ali, lideradas por Lutero. Quase perdi o trem porque errei a hora do ônibus que me levaria de volta para a cidade, e tive de descer o morro por uma trilha.

Mas deu tudo certo. Antes de ir embora, Jon passou no hotel para me dar um abraço, a caminho de Oslo. E me disse que eu tinha saído no jornal da cidade.

Foi isso que fiz em Eisenach. Aí embaixo tem um monte de fotos. Espero que gostem.