Blog do Flavio Gomes
Futebol

25 ANOS ESTA TARDE

ITACARÉ (valeu tudo) – Já dentro do estádio, vendiam feijão tropeiro com bisteca, couve, torresmo e ovo frito. Meu irmão mais novo, não o mais novo, que este ficou em São Paulo para prestar vestibular, morava em Belo Horizonte. Nunca foi muito de futebol. Palmeirense, até hoje pergunta por que o Ademir da Guia não […]

ITACARÉ (valeu tudo) – Já dentro do estádio, vendiam feijão tropeiro com bisteca, couve, torresmo e ovo frito. Meu irmão mais novo, não o mais novo, que este ficou em São Paulo para prestar vestibular, morava em Belo Horizonte. Nunca foi muito de futebol. Palmeirense, até hoje pergunta por que o Ademir da Guia não é titular, quando seu time aparece na TV. Gostei de ver, ao vivo, que aquilo existia mesmo: feijão tropeiro no estádio.

Na minha memória, eram 95 mil pessoas no Mineirão. Talvez um pouco mais, talvez um pouco menos. Jogos para 100 mil não me eram estranhos. Morei no Rio no início dos anos 70. Vivia no Maracanã, inclusive para jogos da seleção. Peguei um ou outro no Morumbi, também. A final de 1985 contra o São Paulo foi uma dessas partidas de três dígitos — e se as estatísticas oficiais não batem com minhas lembranças, lamento por elas.

Dos jogos finais de 1996, o único que não vi no estádio foi o segundo contra o Cruzeiro — eram favas contadas, fizemos 3 a 0 em casa, mas me arrependo de não ter ido. Muito. Jogávamos no Morumbi porque a CBF exigia estádios para não sei quantas pessoas, e o Canindé, um colosso, um patrimônio da humanidade, não podia ser usado. OK, jogamos no Morumbi, então. Sempre às quartas à noite. Domingo nos exibimos para o mundo pela TV, em horário nobre.

Até o primeiro jogo contra o Atlético, a camisa que eu vinha usando era uma bem rara, vermelha e branco quadriculada como a da Croácia. Foi com ela que vencemos o Torneio Início em 1996 no Parque Antarctica, simpático campo de jogo da agremiação coirmã da Pompeia. Ocorre que nesta partida no Morumbi alguém pintou meu rosto com listras vermelhas e verdes, e um policial vetou minha entrada nas arquibancadas. Não vou perturbá-los aqui com a reprodução de meu diálogo com o agente da lei, mas tive de limpar o rosto com a camiseta quadriculada, que ficou manchada para todo o sempre.

No dia seguinte à vitória por 1 a 0, um amigo que tinha loja na 25 de Março conseguiu não sei como uma camiseta oficial Dell’Erba listrada, com patrocínio dos Armarinhos Fernando (mais barato, só se for de graça), patrocínio este que causava espécie na patuleia. Armarinhos Fernando? Hahaha, diziam. A ignorância já era endêmica naquela época. Minha camisa era muito grande e não tinha número. Mas foi com ela na bagagem que peguei o avião em Congonhas na sexta-feira à tarde, para descer na Pampulha. Havia um aeroporto lá, acho que ainda há.

Como disse, meu irmão morava em Belo Horizonte e foi me buscar na Pampulha. A cidade é pródiga em bares e restaurantes, ele morava numa casa legal de condomínio, a véspera do jogo foi muito agradável. Ele mesmo se encarregou de comprar os ingressos. Resolveu que iria comigo ao Mineirão.

No domingo, alguém nos deixou nas proximidades do estádio. Tinha gente. Muita gente. Guardo o ingresso até hoje, um cartão plástico com os escudos do Galo e da Lusa estampados. Fazia calor, creio, mas estávamos com blusas sobre nossas camisetas da Portuguesa — trouxe uma para meu irmão palmeirense, que a vestiu sem pestanejar.

Quando entramos no setor a nós reservado, no que devia ser algum tipo de geral, quase no nível do gramado, olhei para cima e fiquei impressionado. Os lances das arquibancadas no anel superior balouçavam ao ritmo de “Lutar, lutar, lutar/Pelos gramados do mundo pra vencer/Clube Atlético Mineiro/Uma vez até morrer”. Quando retomavam do início, os torcedores me espantavam mais ainda com a paixão com que bradavam “Galo forte vingador”. Um lindo espetáculo, inegável.

Levamos um gol. Mas empatamos de pênalti, cobrança que não vi porque fiquei de costas para o campo. Ao empate, meu irmão, que deve ter entrado num estádio meia dúzia de vezes, se tanto, virou-se para nossa brava torcida e gritou: “Vamos lá! O hino, porra!”. Ele, claro, não sabia o hino. Mas a eloquência foi muito convincente e começamos a cantar o hino, e depois entoamos outros cantos, e aí fizemos 2 a 1, e mesmo depois que eles empataram, nunca tememos a derrota. Nunca tememos a morte.

Foi o jogo da minha vida. E olha que a vida já me vai longa… Só de arquibancada, eu diria, são mais anos do que muitos de você viveram. O bom de passar dos 50 é isso, poder dizer bobagens assim. Mas são muitos, mesmo. É meu habitat, há dois lugares no mundo onde me sinto eu mesmo de verdade: no Canindé e dentro de meu carro de corrida em Interlagos. Anything that happens before and after is just waiting.

Empatamos e, incrédulos, fomos à decisão. Sobre nós e no nosso entorno, duzentas mil pessoas deixavam o estádio em silêncio. Milhões nos viam pela TV. Era semifinal, Galvão Bueno narrou. É da Luuusa! Narrou as duas da decisão, também. Talvez tenham sido os únicos jogos da Portuguesa que Galvão narrou, e sinto muito por ele neste particular.

Vestimos nossas blusas para sair do Mineirão. Trezentas mil pessoas, caladas, caminhavam de volta aos seus lares. Não podíamos expressar alegria, euforia, júbilo, arrebatamento. Nenhuma nesga de vermelho ou verde poderia escapar às blusas, posto que quatrocentas mil pessoas nos cercavam entristecidas, algumas até revoltadas.

Pegamos um ônibus. Chegamos em casa já noite alta. Meu irmão orgulhoso de ter puxado o hino.

Eu, feliz.