Blog do Flavio Gomes
#96, Superclassic, farnéis

Gomes nas bancas

SÃO PAULO (bem que podia chover de novo) – Saiu a última edição da “Quatro Rodas – Clássicos”, ao lado da “Classic Show” a melhor revista de carros antigos do país. Tive a honra de ser convidado pelo Sérgio Berezowski, meu ex-colega de “Placar”, para escrever um textinho para a última página, que reproduzo abaixo. […]

SÃO PAULO (bem que podia chover de novo) – Saiu a última edição da “Quatro Rodas – Clássicos”, ao lado da “Classic Show” a melhor revista de carros antigos do país. Tive a honra de ser convidado pelo Sérgio Berezowski, meu ex-colega de “Placar”, para escrever um textinho para a última página, que reproduzo abaixo. Espero que gostem.

O Berê, aliás, é mais que um amigo. Foi ele quem me vendeu, no remoto ano de 1988, meu primeiro DKW… Que está comigo até hoje, claro.

A foto que escolhi para colocar aqui, bem melhor que o texto, é do Vinícius Nunes. E retrata o exato momento descrito nas minhas mal-traçadas.

Foi lindo

Chovia lá fora, e aqui dentro fazia frio. Frio na barriga, o olho nos três reloginhos, o contagiros, a pressão do combustível, a temperatura da água. E a cabeça num cara que mal conheci e que no fim do ano passado morreu sem que o país e o automobilismo prestassem as homenagens que ele merecia.

Seu capô era quase sempre preto, o número, um emblemático 96 laranja numa bolota negra. Sobrancelhas grossas, nariz aquilino, entradas pronunciadas na cabeleira longa jogada ao vento, o olhar esperto, ágil, e nome de piloto: Norman Casari, que se foi no último dia do ano passado.

Norman se foi depois de inscrever seu nome na história ao estabelecer há exatos 40 anos o primeiro recorde brasileiro de velocidade, com o Carcará — um “streamline” com motor DKW, mais de 212 km/h na Rio-Santos. E há exatos 40 anos estava ao volante de um Malzoni na mais marcante das Mil Milhas, aquela que a Vemag, já com seu departamento de competições extinto, quase ganhou com Emerson e Jan Balder, e acabou fazendo segundo, terceiro e quarto, escoltando a carretera de Camillo Christófaro.

Meu pequenino e acanhado DKW virou 96 neste ano, a mesma bolota negra, os algarismos em laranja, as faixas verde-amarelas iguais à do Carcará, a silhueta do Norman na lateral, criação de um amigo, Bruno Mantovani, que entendeu como ninguém como passar para a pintura de um carro a lembrança de um grande homem.

E lá vou eu para a chuva, primeira etapa do campeonato, 20 carros no grid, sem chance alguma de fazer frente aos clássicos mais potentes, Porsches, Pumas, Karmann-Ghias com motor AP, JKs, Corcéis (ah, os plurais de nomes de carros, como resolver isso?)…

Há 40 anos, os DKWs brigavam, sim, mas já se vão quatro décadas, faltam peças, o desenvolvimento é limitado, faço o que posso com meus menos de 50 cavalinhos, meu câmbio de rua, meus pistões com folgas, meu virabrequim montado assim-assim, não falta esforço dos mecânicos e do meu chefe de equipe, apoio dos torcedores (sim, DKW tem torcida!), mas milagre não há.

Vou para a chuva e me viro do jeito que dá, nas curvas de baixa o carrinho urra, arrasta as rodas da frente, a tração dianteira puxa o bichinho e não deixa a traseira escapar, quem vem atrás que espere, mas nas subidas ele arfa, nas retas ele vai ficando, passa todo mundo, e me vejo só a maior parte do tempo, tentando não sair da pista naquele aguaceiro, honrar aquele número e aquela silhueta na lateral, torcendo para que o Norman, onde estiver, não ralhe comigo.

Termino em 16º, dos 20 que largaram três abandonaram, não é exatamente um resultado para se orgulhar, me recolho aos boxes emburrado e decepcionado comigo mesmo, o carrinho ali, talvez tão decepcionado quanto eu, estou ficando velho, é o que ele deve estar pensando.

No dia seguinte recebo um e-mail de dois irmãos de Campinas que estão preparando um outro DKW para correr conosco, dizem que ficaram emocionados com a corrida, e elogiam: impressionante o jeito como você segurou o carro na segunda perna do S do Senna na largada, foi lindo.

Em silêncio, esboço um sorriso e percebo que, afinal, não estava só naquele carro, não. Se foi lindo, foi o Norman.