Blog do Flavio Gomes
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É tudo verdade

SÃO PAULO (vê se me entende pelo menos uma vez criatura) – Há meses recebi de um internauta a indicação de um longo documentário sobre a TV Globo que nunca tinha tido a chance de ver. E por meses o link ficou repousando na minha caixa postal. Pois hoje tive tempo de ver, pouco mais […]

SÃO PAULO (vê se me entende pelo menos uma vez criatura) – Há meses recebi de um internauta a indicação de um longo documentário sobre a TV Globo que nunca tinha tido a chance de ver. E por meses o link ficou repousando na minha caixa postal.

Pois hoje tive tempo de ver, pouco mais de uma hora e meia de duração. Portanto, se você está disposto a fazer o mesmo, prepare a xícara de café.

Chama-se Brazil: beyond Citizen Kane e só está disponível na internet, porque a Globo conseguiu impedir, na Justiça, sua exibição pública no país. Conseguiu, não: consegue até hoje. Foi produzido para o Channel Four da Inglaterra no início dos anos 90 pelo documentarista britânico Simon Hartog, que morreria pouco depois de concluí-lo.

Há alguns bons motivos para assistir a este documentário. Escolha o que quiser. Por exemplo, é a chance de ver imagens raras da história não tão recente do Brasil, da década de 50 até 1990. Os mais velhos vão se lembrar da TV Tupi, da Excelsior, do nascimento de Brasília, do golpe de 64, dos festivais da Record.

Mas esta é apenas uma razão superficial. Há outras, bem mais relevantes. Os mais novos vão entender como se deu a construção do imenso poder político, econômico, estético e comportamental da Globo no país, por que a emissora sempre se comportou como uma vendedora de otimismos vários ao longo de sua programação, um ranço que perdura até hoje, embora desnecessário num país democratizado numa era de comunicação veloz e mais livre (imagino, espero).

Há críticas pesadas ao jornalismo da Globo que, justiça se faça, é hoje infinitamente mais independente e próximo da realidade do que já foi, graças, suponho, a alguns profissionais que lá labutam. Nada, no entanto, que compense os prejuízos que ela causou por décadas ao determinar os rumos para o Brasil que agradavam ao seu proprietário. Essa fatura, desconfio, vai demorar muito tempo para ser paga. Poder demais na mão de um homem só, um equívoco com o qual o Brasil conviveu por 40 anos.

O documentário traz depoimentos contundentes de gente como Chico Buarque, Lula, Gabriel Prioli, Armando Nogueira, Washington Olivetto e outros. Mostra Armando Falcão dizendo que “ele nunca me criou a menor dificuldade”, sendo “ele” Roberto Marinho, o Cidadão Kane que o Brasil talvez ainda não tenha identificado como tal.

Por uma hora e meia desfilam na tela, no caso não a da TV, porque, repito, o documentário está censurado pela Justiça brasileira, nomes, termos e fatos que, ao menos para minha geração, compõem o mosaico do que tem sido nossa existência: comício da Central do Brasil, JK, Jango, 1968, Jovem Guarda, Marcha da Família com Deus pela Liberdade, luta armada, Chacrinha, Fantástico, Direito de Nascer, Médici, Brasil — ame-o ou deixe-o, Pelé, Copa de 70, Brasilsat, Transamazônica, Riocentro, Selva de Pedra, Gabriela, Dancing Days, Walter Clark, Sônia Braga, Vlado, Manchete, Pantanal, Tancredo, ACM, Sarney, Diretas-Já, Xuxa, greves do ABC, Lula, Brizola, Proconsult, Collor e Jornal Nacional — este, o verdadeiro Grande Irmão a quem se referia George Orwell em 1984, leitura obrigatória.

Ao contrário do que alguns pensam, não tenho nada pessoal contra a Globo, e não menciono a emissora com alguma frequência para fazer tipo, ou por algum vago despeito por jamais ter trabalhado para ela. Da mesma forma não tenho nada pessoal contra seus funcionários, nem os desprezo por trabalharem para uma empresa que, às vezes, trato como uma espécie de Grande Sat㠗 fosse assim, jamais colocaria os pés em suas instalações, e não só já coloquei, como participei de seus programas, e participaria de novo, sem o menor remorso. Ao contrário. Tenho colegas nas Organizações Globo e grandes, enormes mesmo, amigos no circuito Jardim Botânico/Berrini/rua das Palmeiras. Amigos que posso até citar nominalmente, correndo sempre o risco de esquecer alguém: Galvão, Reginaldo, Bassan, Cléber, César Augusto, Luiz Roberto, Uchôa, Tadeu, João Pedro, todos aqueles que por anos foram companheiros nas coberturas de F-1, todos os que trabalham atrás das câmeras (Dentinho, Graminho, Kaká, Jayme, Baiano, sim, estou esquecendo um monte de gente, perdoem a memória senil), profissionais de altíssimo nível e pessoas inatacáveis.

Galvão?, há de perguntar alguém, mas você vive espinafrando o Galvão! Não, não vivo espinafrando Carlos Eduardo Galvão Bueno, vivo espinafrando o que a entidade Galvão, entendendo como “entidade” a voz oficial da emissora, que poderia ser qualquer outro, perpetra no ar, em nome de um ufanismo bobo e nocivo a um país que às vezes me dá a impressão de ser quase demente, tamanha sua apatia e vocação para ser gado, povo marcado, povo feliz.

É preciso compreender o que uma emissora de TV como a Globo significa e como ela atua na consciência coletiva do nosso pobre rebanho, é só isso. O documentário ajuda. Não encerra o tema, mas ajuda.

Falei demais, está tarde e não jantei. Hoje tem sopa em casa. Bye.