Blog do Flavio Gomes
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As escadarias da Gazeta (meu manifesto)

SÃO PAULO (às vezes escrever dói) – Quatro anos atrás, mais ou menos a esta hora, vim para meu escritório. Era também um domingo. O Brasil pulsava lá embaixo. Da minha janela, eu via o Brasil inteiro lá embaixo. Esse Brasil aí da foto. Estou no mesmo lugar, na mesma janela, e não tem Brasil […]

SÃO PAULO (às vezes escrever dói) – Quatro anos atrás, mais ou menos a esta hora, vim para meu escritório. Era também um domingo. O Brasil pulsava lá embaixo. Da minha janela, eu via o Brasil inteiro lá embaixo. Esse Brasil aí da foto.

Estou no mesmo lugar, na mesma janela, e não tem Brasil nenhum lá embaixo. Chove, faz frio, e as escadarias do prédio da Gazeta estão vazias. As escadarias do prédio da Gazeta são o coração do Brasil. Exatamente no meio da avenida Paulista, para onde o país acorre quando é hora de protestar, gritar, reivindicar, festejar, fazer vigília, exigir, pedir.

Essas escadarias vazias têm um enorme significado. Nós, que estávamos lá embaixo quatro anos atrás, não estamos mais.

Quatro anos se passaram desde aquela noite em que me senti leve como uma pluma, trepado num ponto de ônibus durante horas olhando meu país do alto, nosso belo lugar. O país inteiro cantava.

(Voltando a fita. Dezoito anos antes, em 1984, vi meu país de baixo, no meio dele, pé no chão, no Anhangabaú. E era também um belo lugar, também me sentia uma pluma. Passei horas olhando para o alto, para um palanque montado sob o Viaduto do Chá, cheio de esperanças de ganhar uma nação, embora fosse uma luta perdida. Eu era um em um milhão, um em 150 milhões, mas sentia que era o Brasil inteiro, estava tudo nas minhas mãos. Como se sabe, tiraram o Brasil das minhas mãos meses depois.)

Escrevo com os olhos cheios d’água, às vezes me envergonho de ser um pouco chorão, mas chorar sozinho é até confortável porque ninguém vê, nem pergunta nada.

Encontrei uma pasta no meu computador com fotografias e jingles de 2002. Guardei muita coisa. Ainda tem uma bandeirinha de plástico encostada no canto da parede. Faz quatro anos que está exatamente no mesmo lugar. Os jingles me emocionam, porque afinal foram a trilha sonora de um momento especial da minha vida. Eu cantava os jingles, bonitos, para as crianças na hora de dormir. Foi escutando as músicas que meus olhos se encheram d’água.

Quase nada do que eu queria aconteceu nestes quatro anos. Não falo da minha vida pessoal, nem das pessoas do meu prédio, do meu bairro. Afinal, qualquer presidente deste país não tem mesmo de se preocupar com quem mora em Moema, vai a restaurantes e anda de carro bonito. Este é um país pobre, paupérrimo, e é para os pobres e paupérrimos que qualquer presidente deve governar. Sem se importar com a gritaria e o preconceito da classe média, que é boba de dar pena.

Passei quatro anos ouvindo as mesmas bobagens, o cara é um analfabeto, não sabe falar, não tem um dedo, nunca trabalhou, tem uma casa no Morumbi, bebe, é ignorante, não fez faculdade, não fala inglês. Desisti de argumentar e discutir, não por acreditar na máxima dos preguiçosos, de que política não se discute; se discute, sim, é a única forma de melhorar as coisas. Mas é perda de tempo, tolice, bater boca com uma dondoca cujo marido sonega impostos, ou com o cara que registra sua empresa em outra cidade para pagar menos ISS, ou com o dentista que pergunta “com nota ou sem nota?” para cada cliente, ou com o sujeito que dá grana para policial, ou passa as multas para a mãe que não dirige.

Minha vida pessoal está ótima, tenho emprego e casa, saúde e escola para as crianças, faço minha parte a cada minuto, presidente algum precisa se preocupar comigo.

O presidente se preocupou, sim, com quem deveria. O resultado da eleição deve confirmar isso, embora a esta hora, pouco mais de sete da noite, as projeções indiquem um segundo turno. A vida melhorou para os pobres, e se os ricos reclamam, bem, eles sempre reclamaram e se locupletaram, como dizia Stanislaw Ponte Preta.

Mas não há o que comemorar entre os que queríamos mudanças drásticas e radicais, e por isso as escadarias da Gazeta estão vazias. Porque muita coisa ruim aconteceu, também. Não fomos, nosso país e nosso governo, o que deveríamos ter sido em quatro anos. Demos munição, por nossa incompetência e pela falta de caráter de um aqui, outro ali, mais outro acolá, aos que nos governaram por 502 anos e fizeram deste um país lamentável. Munição para que estes exercitassem seu sarcasmo e ressentimento, afinal o doce lhes foi tirado da boca por um bando de barbudos malcheirosos que não fazem as unhas.

Perdemos a chance de reescrever nossa história. É uma derrota coletiva, que ninguém se iluda. Um país como o Brasil ter um presidente-operário que começou a vida num pau-de-arara foi uma enorme vitória, embora a elite nacional considere isso medíocre, sem charme, fedido e cafona.

O fato é que os jingles que ninaram meus meninos quatro anos atrás perderam o encanto, e por tabela a esperança de deixar para eles um país melhor, também. Seremos os mesmos por décadas, creio, desanimado que dá dó de mim.

Há uma chance, mas nem eu mesmo, do fundo da minha ingenuidade, acredito mais nela: uma vitória no segundo turno, se houver, seguida de um expurgo implacável, uma confissão de erros, uma volta às origens do partido e de sua história. Um gulag redentor e purificador.

Quatro anos atrás éramos muitos rostos e corações lá embaixo. Crianças, velhos, negros, pobres, jovens, adultos, brancos, amarelos, punks, gays, putas, gente de todo tipo. Alguns eu fotografei. Sorriam e tinham no olhar um futuro. Desapareceram os olhares e o futuro.

É difícil ter duas chances de se fazer algo grandioso na vida. Se lhe for dada, presidente, seja quem sempre foi, ou quem sempre quisemos que fosse. Para que essa gente aí embaixo volte às escadarias da Gazeta, olhando para a frente com orgulho de viver no país que nos prometeram quatro anos atrás. Ou desde o dia em que nasci.