Blog do Flavio Gomes
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Jardins, 80%

SÃO PAULO (cada um cuida do seu, pois não?) – Ontem a esta hora eu já não aparentava grande excitamento com o noticiário na TV. Não era como quatro anos atrás, nem como no começo do mês. O resultado havia sido divulgado pouco antes e, desta vez, não peguei meu Karmann-Ghia amarelo para vir até […]

SÃO PAULO (cada um cuida do seu, pois não?) – Ontem a esta hora eu já não aparentava grande excitamento com o noticiário na TV. Não era como quatro anos atrás, nem como no começo do mês. O resultado havia sido divulgado pouco antes e, desta vez, não peguei meu Karmann-Ghia amarelo para vir até a Paulista.

Pedi uma pizza, demos janta para as crianças, repassei as tarefas da segunda-feira, e eram bastantes, dei banho nos meninos, eles colocaram o pijama, escovei seus dentes, pinguei colírio num, rinosoro no outro, contei duas histórias, o mais novo dormiu antes, como sempre, o mais velho demorou um pouco mais, também como sempre.

Um domingo normal, porque, acho que já disse, embora uma eleição hoje seja algo muito mais civilizado e corriqueiro, sinto falta daquela expectativa de outros domingos, de outras eleições, das bandeiras e santinhos nas ruas, da sensação de que todos estão envolvidos com o destino de todos.

Até nisso me parece, às vezes, que o Brasil é cada vez mais um país de gente individualista, ninguém quer ser perturbado com santinhos, ninguém quer que o outro saiba em quem vai votar, ninguém quer mostrar o que pensa com as ferramentas que tem às mãos: uma camiseta, um botton, uma bandeira, um boné, uma cara-pintada.

Eu gostava mais de fazer X na cédula do que de apertar botões.

Mas isso tudo deve ser um avanço, as urnas eletrônicas são um avanço, lembro de 1989, no jornal, quando acabou o primeiro turno, deixamos para fechar a manchete a segundos do deadline, Lula e Collor se enfrentam no segundo turno, dizia o pasquim, baseado em boca-de-urna do Datafolha, na qual confiávamos, mas sempre podia dar errado, estava muito apertado. Aí vieram os dias tensos da apuração, Lula, Brizola, Lula, Brizola, até o resultado final, e mais dias tensos, e tudo aquilo.

Hoje os jornais amanheceram velhos com o resultado da eleição, já sabido ontem à noite antes do “Fantástico” e das mesas-redondas. E foi uma segunda-feira normal, cada um cuidando do seu.

Os debates políticos na TV não me emocionaram muito, a festa na Paulista foi mais modesta, o presidente agradeceu a seus eleitores, seu adversário fez o mesmo, já pensa em ser prefeito, o dólar não subiu, a bolsa não caiu, talvez tenha acontecido o contrário, o “mercado” não se abalou, vamos em frente.

Cada um cuida do seu. Agora há pouco a TV mostrou que nos Jardins, onde fica a loja dos Lamborghinis e onde fica meu escritório, 80% das pessoas votaram na oposição, e na periferia, onde mora minha empregada com suas filhas, 70% votaram no presidente, e números assim dão pouca margem a discussões.

No meu bairro Lula deve ter perdido feio, também. Quinta-feira, jantando com amigos, um deles lá pelas tantas disse que não conhecia ninguém que ia votar no presidente, o que não me espantou. Pouca coisa me espanta, atualmente. Cobras que engolem bezerros e fotos do telescópio Hubble estão entre elas, o resto é tudo previsível e normal.

Não notei, também, carrancas entre meus vizinhos dos Jardins, algo que seria de se esperar, uma vez que apenas 20% votaram no presidente. Creio que praguejaram algo ontem à noite, ou hoje no café da manhã, entraram em seus Corolla, fecharam os vidros, ligaram o ar-condicionado e foram cuidar de suas vidas.

Eu, por minha vez, montei no meu jipe, arregacei as janelas de lona, deixei o bafo quente entrar na cabine, grudei a camiseta no banco de plástico. Fiz tudo que sempre faço, com a gostosa sensação de pertencer à maioria, a maioria que quer muito que isso aqui tudo dê certo.

E meus filhos ficaram felizes com o resultado, isso é que importa. Disseram “yes”, um, e “beeeem”, o outro, de um jeito meio particular que parece ser uma gíria deles, quando viram o presidente sorrir na TV. Ele é legal, disse um, o outro ficou ainda mais contente porque andou apostando, vejam só, com coleguinhas na escola, e feitas as contas iria faturar 20 mangos dos tucaninhos.

Acho que os tucaninhos nunca vão pagar, nem devem, onde já se viu criança apostar nessa idade?

Vou cobrar dos pais deles.