Blog do Flavio Gomes
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Achcar e sua Simca

SÃO PAULO (para o domingão) – Sidney Cardoso recebeu do Ricardo Achcar (estamos ficando chiques) este texto que segue, escrito sob a inspiração do lindo desenho (mais um) do Maurício Morais. Leiam e delirem… Foi na rua Teodoro da Silva, com apresentação do Milton Amaral, que juntaram-se vidas e trajetórias no esporte motor: Herculano Ferreirinha, […]

SÃO PAULO (para o domingão) – Sidney Cardoso recebeu do Ricardo Achcar (estamos ficando chiques) este texto que segue, escrito sob a inspiração do lindo desenho (mais um) do Maurício Morais.

Leiam e delirem…

Foi na rua Teodoro da Silva, com apresentação do Milton Amaral, que juntaram-se vidas e trajetórias no esporte motor: Herculano Ferreirinha, Antônio Ferreirinha e, no grupo, Manoel de quem me falta o nome, porém não o respeito pela dedicação que sempre mostrou.

Foi também pela via da capotagem espetacular na Ferradura em Interlagos que o meu co-piloto Vadinho, versão carioca do personagem de Dona Flor e Seus Dois Maridos do Jorge Amado, vulgo pau-queimado e o horror dos pais de família da época, Milton Amaral, que o Simca Achcar resolveu se produzir.

Foi muito também pelo Ciro Caires, o piloto companheiro que me passou a primeira grande lição que mudou a minha vida, sobre suspensão e ajustes, que pude adquirir um motor V8 da Simca contra vontade do Chico Landi, que tinha um certo preconceito com “os carioca cheio de firula”, mas acabou deixando se convencer pelo Ciro. E me deram o melhor motor de dinamômetro que havia na época no departamento de competição em compasso, creio que então à espera da chegada dos Simca-Abarth.

Tinha o dito cujo 146 HP e os tinha mesmo. A concepção do suporte interno entre-eixos do motor foi minha, e a mão-de-obra coordenada pelo Herculano com Antônio e Manoel na execução, e eu enchendo o saco, conhecido por supervisão. O que pouca gente sabe é que eu havia conseguido uma caixa Colotti do Renault Rabo Quente na França, e havia conseguido um feito inédito de engambelar minha mãe, radical contrária ao esporte, que trouxe “a bola de ferro” na bagagem dela.

O raio da caixa tinha um eixo-piloto de 13 mm de diâmetro que agüentou honrosamente a potência e o torque do motor Simca em honra ao orgulho da engenharia francesa. Era inacreditável. Nunca reclamou, piou ou rangeu. Em compensação, era seca que nem uma velha ranzinza, exigia o giro no cabelo ou não entrava, nem dizia bom dia.

Além de robusta, ranzinza e berrante nos dentes retos, era invertida sexualmente. Primeira embaixo na direita (o motor era entre-eixos) e o resto vocês adivinham. A ré era em cima na esquerda. Quem é do meio sabe daquele piloto de “confecção de fábrica” da Willys que enfiou a invertida lá na entrada da Sul e perdeu o norte… Era endiabrada.

Como eu já era conhecedor das mazelas do enchimento do circuito de água da Berlineta, caixa de compensação e uma multiplicidade de sangradores estavam instalados no sistema de arrefecimento. O termo-sifão da Vemag (DKW) era uma lição completa sobre arrefecimento.

Quem viveu esta época e elucubrou na criatividade sabe que rival superior, apenas a complexidade macetadíssima do ajuste dos três platinados do 3=6, incrível peça de façanhas, que Deus os tenha vivo para sempre, mas na história como fonte de inspiração. Quando fechavam intermitentemente o recurso era a casa Dr. Eiras, ou pegar o Jorge Letry de bom humor. A primeira opção sempre levou a melhor. E ninguém sai normal dessa experiência. Apenas melhores pilotos e surdos de um ouvido, o próximo da descarga na janela esquerda. Perguntem ao Chico Lameirão falando no ouvido da direita, por favor.

Foi por estas e mais algumas que eu determinei do alto da minha engenharia que utilizaríamos um radiador de colméia celular da Bongotti. Não sei se todo mundo sabe, não custa mencionar. Na colméia celular a decantação da água se faz num percurso em diagonal aproximadamente 30% maior do que na queda vertical.

Calculando os oitos cilindros, cilindrada, cabeçote plano e circuito em geral, eu estimei que com segurança 11 litros dariam cabo da questão, especialmente pela bomba do motor que era poderosa, e o radiador suportava alta pressão. Isto me permitia colocar uma tampa de radiador de 113 libras. Vamos de experiência 3=6. E assim executamos.

Adiante, no autódromo, na arrancada, o Paulinho Newland com a sua lindíssima e hoje sem preço GTO, surgia encarnado no meu. Coisa de historia. Até eu gosto de ler, dá mais arrepio.

Tudo doido, criativo, corajoso, imprevisível com a morte de copila. Passava na reta e o Antônio abusava dos tamancos, na época indumentária de defesa quando a coisa ficava preta, e sacava os dois e sai de perto. Dava quase cambalhotas e o polegar imenso surgia quase no meio do pára-brisa.

Herculano, mais gelado e também menor, botava um sorriso ritualista e ficava na dele, e o Manoel compartilhava do Antônio dando suporte para ele não ser atropelado.

De repente, não que a morte se pronunciasse, mas era meio como. Bumba, a mangueira superior de saída do motor se soltava do radiador. Podia ser a mangueira inferior. Mas não dizia a morte! Tem que ser a de cima que é mais quentinha… E o meu cangote era premiado com um jato de vapor, água e berro de motor, tudo quentinho.

Aí, estava na pista aquele insolente jornalista. Na terceira mangueirada que eu levei o nome ficou. “Vem quente que eu estou fervendo”. Não insistam e não encham o meu saco: não vou dizer o nome desse analfabeto que provavelmente escrevia o meu nome com “x”. Passaram-se quatro anos, mais ou menos.

O Antônio já usava calçados robustos, discretos e militarescos. Os tamancos se foram, provavelmente na cabeça de alguém. Mas o fato é que já era campeão e a assombração de muitos preparadores de motor.

Uma noite, sem saber por que, entrei no nosso box e encontrei o Antônio namorando um pistão embevecido. Tirei-o da letargia, cara doente, e dei-lhe o que eu chamo de ordem. Acho que nem ele sabe por que me atendeu.

Digo isso porque não veio com rabugice e impropérios lusos. Me atendeu. Acho que ele também não sabe por que, mas o Antônio lia os meus instintos, coisa que eu não sabia fazer. “Tira esse radiador que eu quero ver uma coisa.” Silêncio e execução. Fiquei preocupado. Antônio retirou o radiador botou na bancada e olhou para minha cara. “Pega essa garrafa de litro e enche essa coisa.” Antônio, ainda calado, encheu. Deu 7 litros.

Fechamos o box e fomos para a Montenegro, hoje Vinicius de Moraes, no Garota de Ipanema. Tomamos todas e eu ouvi a noite toda resignado repetitivos impropérios com o peso gutural daquela boca cheia de graxa e parafusos do Ferreirinha, o maior mecânico do Brasil, porque veste a camisa até debaixo da neve.

Eu vi.

Ricardo Achcar