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Seu Frias

Jorge Araújo A primeira vez em que entrei na Redação da “Folha” foi em novembro de 1986. Semanas antes, ainda trabalhando para a SBPC, enviara uma carta à “Placar”, aos cuidados do diretor de redação Juca Kfouri, dizendo que queria tabalhar lá. Nunca tinha visto o Juca mais gordo. Apenas queria trabalhar na “Placar” e […]

Jorge Araújo

A primeira vez em que entrei na Redação da “Folha” foi em novembro de 1986. Semanas antes, ainda trabalhando para a SBPC, enviara uma carta à “Placar”, aos cuidados do diretor de redação Juca Kfouri, dizendo que queria tabalhar lá. Nunca tinha visto o Juca mais gordo. Apenas queria trabalhar na “Placar” e mandei uma carta pedindo emprego.

Pelos mesmos dias, a “Folha” publicou anúncio abrindo uma vaga para repórter de Educação e Ciência. Como era minha área, afinal, e o salário razoável, me candidatei. Dias depois, recebo um telegrama em casa, me convocando para uma entrevista no jornal. Na mesma tarde, toca o telefone na SBPC e era Carlos Maranhão, redator-chefe de “Placar”, dizendo que tinham recebido minha carta, acharam muito interessante, não tinham vaga, mas queriam me conhecer. Marcou para a manhã do mesmo dia em que tinha agendado a entrevista na “Folha”.

Fui à Abril, que ficava na região da Berrini, achando que no dia seguinte estaria escalado para cobrir a seleção brasileira. Fui muito bem recebido, encomendaram uma matéria para me testar, mas reiteraram que não tinham vaga nenhuma. Eu disse que iria à “Folha” de tarde para uma entrevista, mas que estava pensando em desistir porque tinha certeza que me contratariam na revista.

Tonico Duarte era um dos editores. Disse para eu deixar de ser tonto e fazer a entrevista no jornal. Fui. Lembro até da roupa que usava: uma camiseta azul clara com o Mickey estampado, paletó cinza chique-mas-que-parece-velho, jeans e tênis All Star preto. Eu não gostava da “Folha”, e não queria trabalhar lá. Por isso, falei muito mal do jornal aos meus entrevistadores — Carlos Eduardo Lins da Silva e Luiz Caversan, secretários de Redação, e Marcelo Leite, editor de Educação e Ciência. Disse que achava os títulos das matérias horríveis, a Primeira Página confusa e que as legendas eram para cegos.

Fui contratado.

Na segunda-feira seguinte lá estava eu naquele prédio medonho da Barão de Limeira, entrando na Redação no quarto andar coberta de pastilhas coloridas do chão ao teto. Era impossível trabalhar ali, naquele barulho, sem ar-condicionado, um calor dos diabos, e aquelas pastilhas embaralhando a vista. As mesas eram de aço, as cadeiras de madeira, como aquelas de bar, havia alguns computadores e muitas máquinas de escrever. Eu não conhecia ninguém, porque fiz Rádio & TV na FAAP e a “Folha” era reduto da ECA, da PUC e da Cásper.

Minha primeira pauta foi entrevistar duas pesquisadoras de lingüística na USP que estavam fazendo um convênio com escolas públicas, uma merda qualquer dessas. Voltei ao jornal disposto a pedir demissão, porque não queria ficar escrevendo sobre essas coisas depois de dois anos trabalhando com ciência em rádio, mas não deu tempo. Cheguei e a redatora que fechava a edição, Fernanda Scalzo, me passou a retranca (um papel indicando tamanho do texto, medida do título, essas coisas) e disse para eu me apressar.

Sentei e comecei a escrever a matéria à mão. O editor viu aquilo e perguntou o que eu estava fazendo. “Escrevendo a matéria, uai”, respondi. Ele me colocou diante de uma Lexicon verde e pesada, puxou o rolo de papel (com carbono para várias cópias, uma para ele, uma para a digitação, uma para a “Folha da Tarde”, outra para a Agência Folha, outra para a puta que o pariu) e disse: “15 linhas, estamos fechando”.

E no dia 25 de novembro de 1986 saiu meu primeiro texto na “Folha”, receio que nada de inesquecível, apenas uma notinha besta sobre algo que provavelmente nunca aconteceu.

E fui ficando, passava os dias em universidades entrevistando pesquisadores e cientistas, e escrevia, escrevia furiosamente e muito rápido, e aprendi a mexer naqueles computadores toscos, os de nível 2, apenas para redigir, e os de nível 1, para fechar e “descer” as matérias, e tudo que caía na minha mão eu pegava, e aí me jogaram na fogueira de acompanhar a briga entre a “Folha” e o Sindicato dos Jornalistas, questão de honra para a casa — o jornal era contra a obrigatoriedade do diploma para jornalistas, contratava gente formada em outras coisas e ainda afrontava os caras colocando um fedelho como eu, não formado em Jornalismo, para fazer matérias sobre o caso.

Ganhei pontos nesse negócio, os textos eram lidos pelo diretor de Redação, Otavio Frias Filho, que aprovava tudo sem mudar uma vírgula, e meu editor ficava espantado com isso. Eu não dava muita bola, porque o assunto também era um saco e eu queria trabalhar com futebol.

Assinar matéria na “Folha” era para poucos, e lá pelas tantas, como eu tinha muitas fontes na área graças aos meus dois anos de SBPC, me colocaram para fazer uma grande matéria sobre ciência e constituinte, e foi assim que no dia 1º de janeiro de 1987 meu nome saiu pela primeira vez nas páginas do maior jornal do país: orgulhosamente, Flavio Gomes — Da Reportagem Local.

A mesa que me coube na editoria pertencera, anos antes, a Lilian Witte Fibe e, depois, a Luiz Nassif. Era uma honra trabalhar ali, naquele sítio histórico e cafona ao mesmo tempo. Aos poucos, até as pastilhas coloridas deixaram de me incomodar. Eu adorava ver as rotativas pelo grande vidro da entrada do prédio, o painel pintado na parede ao lado da escadaria que levava à Redação da “Gazeta Esportiva”, visitava meus novos amigos na “FT” e no “NP”, vivia num ritmo frenético, tinha orgulho do meu crachá amarelo, me sentia um Samuel Wainer, aquilo era minha razão de viver.

Saía tarde do jornal para tomar cerveja nos bares fétidos do Centro, e quando dava fome ia ao Ponto Chic ou ao Filé do Moraes, ou a uma churrascaria cujo nome me escapa, mas que ficava ao lado dos puteiros da Boca do Lixo e tinha uma ótima salada de agrião que, me jurava o Renato Brandão, da Arte, anulava os efeitos dos cigarros que a gente fumava com razoável disposição ao longo das horas no jornal.

Foram oito anos de “Folha”, com uma breve saída, entre janeiro e fevereiro de 1988 para, finalmente, realizar o sonho de trabalhar em “Placar”. Mas o bichinho do jornal diário já tinha me picado. Estávamos no fim dos anos 80, logo depois das Diretas-Já, Sarney presidente, uma nova Constituição sendo escrita, eleições pela frente, e o Projeto Folha, bem ou mal, mudava a cara do jornalismo impresso no Brasil.

Eu me sentia importante.

Não demorou muito e fui para a editoria de Esportes, logo virei editor, aos 24 anos, então acabaram meus fins de semana e deixei de ter hora para voltar para casa, comandava uma equipe de 30 pessoas, mas adorava tudo aquilo, Collor, Lula, Brizola, Redação invadida pela PF, Copa do Mundo, F-1, caras-pintadas, impeachment, Europa, corridas, reuniões, e depois de dois anos riscando páginas e fechando jornal, virei repórter especial, até morrer Senna, eu chutar o balde e seguir meu caminho.

Hoje, domingo, morreu o seu Frias. Octavio Frias de Oliveira, dono da “Folha”, tinha 94 anos. Quando eu cheguei, ele já era um velhinho de 74, mas muito vigoroso e disposto, e dava expediente todos os dias no jornal. Não ia muito à Redação, geralmente subia direto para o nono andar, onde ficavam os editorialistas, e só aparecia de vez em quando lá embaixo.

Mas como editor, uma vez por mês eu tinha de vestir meu melhor terno — eu só tinha um — para o almoço com o seu Frias, lá mesmo no prédio da Barão de Limeira. Era o almoço com os editores, secretários de Redação, diretores de sucursais, repórteres especiais e caciques em geral, eu era sempre o mais novo de todos, uma espécie de mascote da turma, a mesa era grande, o cardápio, modesto — lembro que sempre tinha purê de batatas.

Eu tinha medo do seu Frias, ele raramente falava comigo nessas reuniões porque esporte nunca foi algo muito importante para a “Folha”, só mesmo na véspera da Copa do Mundo de 1990 fui sabatinado por ele na grande mesa do almoço, e me perguntou sobre os planos para a cobertura, se estava indo tudo bem, e eu disse que não, porque o plano Collor tinha ferrado nosso planejamento, a gente queria mandar 15 repórteres e a grana só ia dar para dois.

Ele colocou a mão em concha atrás da orelha esquerda, virou o rosto para o lado, apertou os olhos e disse “hein?”, aí eu levantei a voz e respondi que estava tudo bem, dentro do planejado, seu Frias, não precisa se preocupar que vamos fazer uma boa Copa, e comi meu purê de batatas.

Tinha medo do seu Frias, mas não de seu filho Otavio, o Otavinho, ou apenas OFF, como assinava seus memorandos Otavio Frias Filho, a cara do Franz Kafka. Um gênio precoce, sujeito de enorme capacidade intelecutal, que aos 20 e poucos anos peitou uma Redação de velhos jornalistas contaminados por velhos hábitos para colocar em prática o Projeto Folha, e mudar a cara da imprensa brasileira, praticando de forma paranóica conceitos como ética, imparcialidade, apartidarismo e isenção. Otavio falava baixo, não se alterava nem para comer o rabo de quem fazia alguma cagada, aparecia mais na Redação, ia às reuniões de edição e fechamento, fumava Hollywood, vivia jogando uma caneta Bic para o alto e pegando sem nem olhar para ela, era muito ativo e preocupado com o jornal que colocava nas ruas. Outro dia, quando lancei meu livro, me telefonou. Eu não conversava com ele desde 1994. Fiquei muito contente.

Devo tudo que sou no jornalismo à escola da “Folha”, onde aprendi a me indignar e a ser irredutível, a apurar e checar, a duvidar e questionar, a escrever e reescrever, onde virei gente.

A morte de seu Frias me deixou muito triste. Sua imagem, por uma daquelas bobagens que me são muito peculiares, sempre estará ligada ao purê de batatas, àqueles almoços mensais, ao calor que eu sentia dentro do meu terno preto, às pastilhas coloridas, à Lexicon barulhenta que sujava meus dedos quando tinha de virar a fita, ao cheiro de papel e tinta, ao ronronar das rotativas. Dele não guardo nenhuma palavra em especial, nenhum encontro inesquecível, nenhum texto histórico.

Mas guardo um papo de botequim com um veterano das Olivettis, sobre um furo da “Folha” na época da agonia de Tancredo, história clássica do jornal, que bancou a doença terminal do presidente em manchete quando todo mundo comprava a versão oficial da recuperação.

De onde viera aquela informação, afinal?, perguntava o foquinha deslumbrado aqui ao veterano no botequim. Foi o seu Frias que deu. Ele é o nosso melhor repórter, respondeu.

Foi-se o melhor repórter.