Blog do Flavio Gomes
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GIRA MONDO, GIRA (TERÇA)

SÃO PAULO (pontos de vista) – Fidel Castro renunciou hoje à Presidência de Cuba e ao comando das Forças Armadas do país. A data, 19 de fevereiro de 2008, entrará para os livros de História como o dia da queda do Muro de Berlim e da dissolução da URSS. É a História sendo escrita diante […]

SÃO PAULO (pontos de vista) – Fidel Castro renunciou hoje à Presidência de Cuba e ao comando das Forças Armadas do país. A data, 19 de fevereiro de 2008, entrará para os livros de História como o dia da queda do Muro de Berlim e da dissolução da URSS. É a História sendo escrita diante de nossos olhos.

Mas esta noite, no Brasil, o assunto será o paredão do BBB.

Essa é uma das diferenças básicas entre as sociedades cubana e brasileira. Nós vemos Cuba sob o olhar de décadas de propaganda americana sobre a ilha. Analisamos o regime sob a ótica da frivolidade, fazendo gracejos sobre os carros velhos, a quantidade de canais de TV, a falta de celulares. E depois, num segundo momento, tentamos politizar a questão cubana com o argumento único de que “se fosse bom não proibiriam ninguém de sair” e coisas do tipo.

Tese superficial como um espinho.

Com nossa visão americanizada de mundo, não conseguimos compreender e nem aceitar uma sociedade em que a prioridade não é comprar carro bonito, ou o último Motorola, ou o apartamento na Riviera. Viver é ter. Qualquer coisa que não seja parecida com isso é não-viver.

Esse é o maior engano que se comete quando se fala de Cuba: não entender que existe gente no mundo que não liga para essas coisas. Cuba vive sob o mesmo regime há meio século. 90% de sua população de 11,2 milhões de habitantes (dado de 2002) — menor que a da cidade de São Paulo — tem até 64 anos. Ou seja: praticamente todos nasceram depois que Fidel derrubou a putaria de Fulgêncio Batista.

Viver, para essa gente, é uma experiência muito diferente da nossa. Batalha-se pelo supérfluo, com a certeza de que o básico está garantido: educação, saúde, emprego (antes de seguir, leia este belo resumo sobre Cuba, com dados muito relevantes; preste especial atenção no quadro que fala sobre a política dos EUA em relação ao país).

Em tudo que realmente importa, Cuba é melhor que a maior parte do planeta. Mortalidade infantil, analfabetismo, miséria, falta de moradia e desemprego não fazem parte da rotina do cubano. Que pode não ter uma vida de luxos e regalias, pode não ter TV de LCD ou um Corolla na garagem, mas olhe para o seu próprio umbigo: quem aqui tem?

Dispa-se de seus pequenos desejos de consumo e responda, com sinceridade: se você fosse sua empregada, morando nos confins da periferia, ganhando 500 reais por mês, com filhos na escola pública, assassinatos no boteco ao lado, camelando quatro horas por dia dentro de um ônibus, tendo de pegar fila no centro de saúde, não acharia um país como Cuba uma maravilha?

A imensa maioria dos brasileiros, imensa mesmo, vive muito pior que o pior dos cubanos. Você pode até viver melhor. Eu vivo. Mas a imensa maioria, imensa mesmo, vive muito pior.

Aqui temos democracia, TV a cabo, loja da Maserati, calças Diesel, celular 3G. Podemos ir a Miami sem correr o risco de morrer afogado numa balsa feita em casa. Mas quantos de nós, brasileiros, vivemos integralmente essa liberdade? Quantos de nós podemos passar diante de uma vitrine, desejar algo e comprar? Quantos de nós podem sonhar com algo muito diferente da balsa que embala os sonhos dos dissidentes?

Nossa liberdade é bem relativa. É condicionada ao que se tem. E, para quem não tem nada, muito mais cruel do que as restrições ao ir e vir a que os cubanos são submetidos. Eles, pelo menos, sabem as regras do jogo, e as regras lá são feitas para a maioria. Sua realidade é a da ilha, e é nela que vivem. Com ambições e pretensões bem diferentes daquelas que nos alimentam, nós aqui do lado bonito e feérico do mundo.

E, afinal, quem somos nós para hierarquizar ambições? Quem é você para achar que seu desejo de ter uma Hilux é mais defensável do que o desejo de um cubano de ter uma geladeira melhor? Quem é você para afirmar que o american way of life adotado e defendido pelo mundo ocidental — esse estilo de vida que permite e aceita a degradação do ser humano miserável, que estimula a competição e que fecha os olhos para a violência diária contra os que não deram a sorte de ter o que você tem — é mais humano que a simple life de um povo como o cubano?

Na verdade, quem somos nós para falar de Cuba? Quem somos nós para troçar de Fidel? Quem somos nós para caçoar dos prédios decrépitos de Havana? Que país nossos pais nos deixaram, e que país estamos deixando para nossos filhos? Podemos nos orgulhar de alguma coisa? Podemos nos orgulhar de ter construído, com nossos meios e nossas mãos, uma nação onde as pessoas têm as mesmas chances, onde todos têm direito a uma escola, a um médico, a um trabalho?

Cuba pode. Nós fracassamos, eles venceram.