Blog do Flavio Gomes
Turismo

GERD

MUNIQUE (e acabou) – O primeiro encontro foi no estacionamento de uma grande oficina em Düsseldorf. A quarta-feira estava fria e cinzenta, e o carrinho tinha ficado ao relento alguns dias. Estava sujo, tinha marcas de dedos de mecânicos na capota, nas portas, no capô e na tampa do porta-malas. Na canaleta do teto, contornando […]

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MUNIQUE (e acabou) – O primeiro encontro foi no estacionamento de uma grande oficina em Düsseldorf. A quarta-feira estava fria e cinzenta, e o carrinho tinha ficado ao relento alguns dias. Estava sujo, tinha marcas de dedos de mecânicos na capota, nas portas, no capô e na tampa do porta-malas. Na canaleta do teto, contornando o vidro dianteiro, havia água acumulada.

Ainda bem que é de plástico, pensei. Abri o porta-malas e nas frestas de encaixe da tampa estava cheio de pequenas folhas molhadas, uma pasta meio amarela, meio marrom, que delicadamente tirei com as mãos e joguei no chão.

Era mais ou menos o que eu esperava. Herr Drösser poderia ter dado um talento no bichinho, uma cerinha, quem sabe um pneu pretinho. Mas estamos na Alemanha, esse tipo de camaradagem não faz parte do cotidiano. Gerd estava ali para receber a TÜV, o certificado técnico de que pode rodar por terras germânicas e da União Europeia sem colocar em risco a camada de ozônio ou os guaxinins do Cáucaso, e recebeu.

Bati na chave, funcionou. Motor dois tempos não é exatamente um segredo para mim, e logo de cara percebi que tinha uma coisinha boa nas mãos. Os rolamentos não roncavam e o barulhinho do escapamento era saudável. Muito prazer, disse. Ele morreu.

Foi o primeiro toque dessa amizade que começava meio desconfiada.

Vai ver a gasolina.

Depois de três ou quatro tentativas, lembrei da torneirinha debaixo do painel. A, Z, R. Coloquei em R. Na chave. Téin-téin-téin.

Veja sempre a gasolina.

Primeira para baixo, como no DKW, mas junto da coluna. Segunda para cima, terceira para baixo, puxando para você, quarta para cima, com roda-livre permanente. A ré, empurrando a alavanca para a coluna, depois para baixo. Muito simples.

Deixamos a oficina pelas ruas de Düsseldorf, onde vivem meus amigos Dom Pedro Von Wartburg e sua esposa, a condessa Julyanna Della Pampuglia, debaixo de chuva fraca e soltando uma deliciosa fumacinha azul. Passa aqui, para ali, abastece acolá, deixei Dom Pedro em Essen, onde foi visitar um de seus castelos de outono, e aí ficamos só nós dois.

Eu e Gerd.

Acho que vamos formar uma boa dupla, eu disse. Gerd não respondeu. Quem é esse cara? Mas um carro se torna dócil quando percebe que quem está ao volante se importa com ele. Acho que ainda mais se for um carro alemão-oriental, que passou os últimos anos escondido numa garagem em Leipzig para sair só de vez em quando e ser alvo de chacota, olhares tortos, narizes empinados, alérgicos a qualquer coisa perfumada que saia de um cano de escapamento.

Testei tudo. Faróis funcionando, alto, baixo e lanterna. Limpador de parabrisa idem, quatro velocidades, normal, rápida, temporizador 1, temporizador 2. Uau. Pisca-alerta. Desembaçador do vidro traseiro. Buzina. Pisca-pisca, os dois lados. Luzes de freio. Rádio, um Blaupunkt com mostrador digital com alguns leds queimados, mas não tinha muita importância, tocava, quatro caixinhas de som, bom demais. Tudo isso foi verificado para tirar a TÜV, menos o rádio, claro, mas eu queria ver com meus próprios olhos.

Antes de pegar a primeira estrada, parei já não lembro onde, longe de olhares curiosos, exceto o meu, para conhecer Gerd um pouco mais a fundo. Abri o capô. Localizei as bobinas, duas, as velas, duas, o reservatório de fluido de freio, olhei de novo com mais atenção a reguinha graduada que marca a quantidade de combustível no tanque, dei uma dedada na tensão da correia do alternador, me impressionei com a engenhosidade do sisteminha de refrigeração a ar que dispensa bomba d’água, radiador e essas coisas que só servem para ocupar espaço e aumentar o peso, vi como funcionava o sistema de alimentação de combustível por gravidade, depois voltei para dentro do carro, experimentei as regulagens do banco, para frente e para trás, o encosto idem, sobe ou desce, mais nada, saí de novo e fui ver o que tinha no porta-malas, um estepe em ótimas condições e calibrado, triângulo, estojo de primeiros socorros, macaco, chave de roda. Descobri como travar a tampa do porta-malas, é só empurrar a dobradiça, depois puxar para fechar, tudo muito simples e prático, a mesma forração marrom do assoalho revestindo o porta-malas, nada rasgado, o tecido também marrom dos bancos em perfeito estado, as laterais de porta perfeitas.

Quando encontro um antiguinho pela primeira vez, prefiro ficar com ele sozinho algum tempo do que ter de escutar dos outros os defeitos e qualidades que tem. Eu mesmo descubro, não gosto que fiquem falando mal. Ih, tem um risquinho aqui. Xi, esse botão não é original. Olha bem, a porta não tá alinhada, esse carro já foi batido.

Dispenso.

Quando acabei minha vistoria particular, parei na frente do Trabi, cruzei os braços, olhei bem nos seus olhos, dei um largo sorriso e disse: vamos nessa, rapaz? Bora, respondeu Gerd. Pra onde?

Foi assim que ficamos amigos de verdade, porque tenho certeza que enquanto eu olhava, apertava e beliscava, o carrinho também avaliava aquele sujeito baixinho e escasso na cabeleira, com tênis velhos e calça rasgada, usando apenas uma camiseta de mangas compridas, sem sacar o frio que vinha pela frente, parecia não dar muita bola para isso, e que falava uma língua meio esquisita, mas parecia ter boas intenções. E o sorriso que recebi é diferente, pensou Gerd, esse cara tá feliz.

Encaramos autobahns, percorremos periferias, paramos em lanchonetes, demos voltas em fábricas desativadas, visitamos museus, fizemos muitas, muitas paradas em postos de gasolina e pequenos restaurantes de beira de estrada, ele tomava sempre um café e saía com uma latinha azul e prateada na mão, rodamos por cidades grandes e minúsculas, nos perdemos, nos achamos, cruzamos as largas avenidas de madrugada, com o rádio alto e o motorista também, dormi na rua, em garagens fechadas e aconchegantes, em outras frias e mal iluminadas, nunca tinha estado em nenhum lugar desses, minha vida era Leipzig, daqui até ali, até que me esqueceram num canto, e aí aparece esse cara e me leva para Osnabrück (não sei o que queria ver lá, mas enfim…), Hannover, Wolfsburg, Berlim.

Berlim.

Uma das coisas que sempre quis fazer na vida foi cruzar o Portão de Brandenburgo num Trabant. É uma coisa besta, normalmente as coisas que sempre quis fazer na vida são bestas e “fazíveis”, nunca quis escalar o Himalaia, nem chegar ao Pólo Norte. E mesmo essas coisas bestas não consigo fazer direito, porque o Portão de Brandenburgo já há um bom tempo é fechado para veículos, é preciso contorná-lo por ruas paralelas, no máximo dá para passar em frente.

Passei em frente de Trabant, eu guiando, acho que está valendo para a categoria “coisas que sempre quis fazer na vida e finalmente fiz”, mas não parei para tirar fotos, porque algumas dessas coisas prefiro registrar em outros lugares, não num chip besta.

Berlim foi a única cidade em que ficamos duas noites, eu e Gerd, e ele já no primeiro dia circulava pelos dois lados do Muro com uma baita desenvoltura, é por aqui, dobra à esquerda, vai reto, vai por mim, não tem erro, estaciona ali e vai a pé, eu te espero, não tem pressa, não, não tá frio, eu tô acostumado, tranca direito, você deixou o farol aceso, não esquece de pagar o tíquete antes de sair, e de Berlim seguimos para Dresden, agora já fugindo das autobahns, dorme tarde, acorda mais ou menos cedo, toma um bom café da manhã, dá uma volta, pé na estrada, para pra comer, está escurecendo, estamos chegando, onde fica o hotel?, achamos, se der janta, se não der não janta, escreve, lê, dorme, acorda, banho, estrada.

Eu nunca tinha andado tanto na vida. É só fazer a conta. Quando esse cara sentou aí, eu tinha 50.395 km rodados em 21 anos de uma vida sossegada e previsível. Uma média bem aceitável de 2.400 km por ano, se bem que de vez em quando eu tinha vontade de sair mais um pouquinho, aproveitar os dias de sol na primavera, mas o outro carro é maior, cabe mais coisa, não para de nascer gente nessa família. De qualquer forma, eram 200 km por mês, um pouco mais, um pouco menos, e esse cara está rodando mais de 200 km por dia. Precisa confiar muito, como é que ele sabe que não vou me cansar?

Ele é boa gente, mas se eu cansar, paro e foda-se.

E o carrinho não cansa. Segue com seu motorzinho ronronando a noventaporhora, ritmo que estabeleci como ideal, mesmo sabendo que dava para ir um pouco além. Mas noventaporhora está bom, não temos pressa, a gente só tem de chegar. Toca alguma coisa que presta nesse rádio, não agüento mais ouvir alemão falando pelos cotovelos, nunca vi rádio para ter tanto noticiário, É hora cheia rapaz, aqui é assim, Foda-se que aqui é assim, eu quero ouvir música, Em hora cheia é noticiário, esquece, Então vou desligar, Desliga, ué, Cadê meu cigarro?, Debaixo do painel à direita, E o isqueiro, cacete?, No seu bolso, A máquina, preciso tirar uma foto da paisagem, Debaixo do painel à esquerda, O celular tá tocando, Caiu no chão, do lado do banco, Onde tá a caneta?, preciso escrever um negócio, Atrás do cigarro, escreve quando parar, não dá pra escrever dirigindo, Claro que dá, faz o seu que eu faço o meu, Olha pra frente, Não enche o saco, Não é por aí, Claro que é, Olha o mapa, era à direita, Puta merda, era mesmo, vou fazer o retorno lá na frente, Isso, faz, bem na frente da Polizei, Eu vi, não enche o saco, vou fazer lá na outra frente, Você é muito burro, quer fazer tudo ao mesmo tempo, faz uma coisa de cada vez, Não me enche o saco, eu faço o que quiser, Dá pra trocar a marcha?, são quatro, Eu sei que são quatro, mas gosto da terceira, fica na sua.

Dresden, Praga, polícia, tenho medo de polícia, Brno, Tá parando por quê?, Vou dar carona pras meninas, Nem vem, olha as malas, não cabe, pode ir em frente, Deixa de ser bicha, claro que cabe, Eu não vou sair do lugar, olha o tamanho da gordinha, Cabe, sim, A gordinha vai aí do seu lado, Não faz mal, é a mais simpática, pelo menos a gente conversa, o que importa é a beleza interior, Quem gosta de beleza interior é decorador, Vai se foder, anda aí e não enche o saco.

E Gerd nunca andou tanto, com cinco vezes o peso habitual, duas mochileiras e suas mochilas descomunais, mais do que noventaporhora, não queria fazer feio e não fez, e de lá para Bratislava, no pé do castelo, garagem limpinha, iluminada, acho que foi de onde ele mais gostou, porque a perna foi longa, quase 300 km, e no dia seguinte seria a sopa no mel até Viena, e em Viena não é que aparecem outros Trabis?, e foi aquela noite inesquecível que só acontecem em filmes sobre Trabants.

De Viena a Salzburg também foi mais ou menos desgastante, outros 300 km, boa parte à noite, embora Gerd não tenha dado sinais de fadiga em momento algum. Se cansou, não falou. Ficou quietinho em seu canto durante à noite e parte do dia, enquanto eu passeava pelo centrinho da cidade que respira Mozart por todos os poros — um pé no saco, tem a casa de Mozart, o chocolate de Mozart, o licor de Mozart, a estátua de Mozart, o concerto de Mozart, a bolsa de Mozart, a camiseta de Mozart, o isqueiro de Mozart, o boneco de Mozart, a puta que o pariu de Mozart, parece que a Áustria só teve Mozart de bom até hoje.

Umas três da tarde volto ao hotel, as malas já estavam no carro, tinha fechado a conta antes, desço à garagem para começar nossa última jornada e tem uma pequena mancha no chão, debaixo de Gerd. Tem mesmo, juro. Não é literatura.

Passo o dedo, é gasolina fresca. Eu nunca fecho a torneirinha quando estaciono, não precisa, nunca pingou gasolina. Você tá chorando?, Não, Deixa de viadagem, você tá chorando, É só gasolina, Só gasolina o caralho, nunca pingou gasolina, o que foi?, Não é nada, Vou fechar a torneirinha e te largar aí, Vambora logo, Por que você tá assim?, Não é nada, vamos que tem chão até Munique, Eu sei quanto tem até Munique, Então vamos.

Saímos em silêncio do hotel e do lado tinha um posto grande de gasolina, com lava-rápido e tudo. Coloquei Gerd para lavar, comprei produtos de beleza, um negócio para passar no painel, outro nos pneus, um pano especial para secar os cantinhos que ficaram molhados, fui ao aspirador, um euro por sete minutos, tirei os dois tapetinhos da frente, passei o aspirador por todo o interior, achei amendoim no chão, que a gordinha da carona tinha deixado cair, calibrei os pneus, Gerd ficou brilhando.

Deixamos Salzburg rumo ao oeste, a fronteira com a Alemanha é logo ali, caímos na autobahn, passamos ao lado de um lago enorme, depois de uns 70 km caí fora da autobahn e peguei uma estradinha que terminaria no mesmo lugar, Munique, onde daqui a pouco, daqui a pouco mesmo, pego um voo de volta para casa.

Escureceu rápido e começou a chover forte ainda na estrada, e estávamos sozinhos no meio do nada.

Onde eu vou ficar?, Num lugar que eu arrumei, E depois?, Depois eu vou embora, uai, E não vai voltar mais?, Não sei, tenho coisas pra resolver no Brasil, E eu vou ficar quanto tempo nesse lugar que você arrumou?, Não sei, alguns dias, Onde é o Brasil?, Longe pra caralho, É legal lá?, É, Alguém vem me buscar aqui?, Vem, um caminhão, E depois?, Para de me fazer perguntas, que saco, tá chovendo, preciso prestar atenção na estrada.

Você vai me dar pra alguém?, Não, E daqui eu vou pra onde?, Para o norte, Da Alemanha?, Não, da Dinamarca, Dinamarca?, Claro que é da Alemanha, O que eu vou fazer no norte da Alemanha?, Cuidar das suas férias, E depois?, Depois nada, Como, nada?

Chegamos. Não para de chover. Desliguei o motor, apaguei o farol, tirei as coisas do carro, voltei, sentei no meu banco, no escuro, a chuva batendo no teto de fibra de algodão. No odômetro, exatos 2.126,1 km. Em nove dias.

E aí?, perguntei.

Tudo bem.

Meu voo é bem cedo, não vai dar nem para dormir.

Dorme no avião.

É o que eu vou fazer.

Certo.

Antes de ir venho dar um tchau.

OK.

Ah, mais uma coisinha.

O quê?

Quando for sair de férias, não esquece de levar protetor solar.

Pra quê?

É que lá é quente e faz muito sol.