Blog do Flavio Gomes
Turismo

OS SOCIALISTAS

VIENA (e agora veio a chuva) – Não vinha sendo lá um dia muito emocionante. Se fosse preciso editar os melhores momentos até as 5 da tarde, um deles seria o embate na garagem do hotel que quase resultou num Trabant arrancando uma cancela em Bratislava. Culpa exclusiva dessa falta de padrão mundial no uso […]

VIENA (e agora veio a chuva) – Não vinha sendo lá um dia muito emocionante. Se fosse preciso editar os melhores momentos até as 5 da tarde, um deles seria o embate na garagem do hotel que quase resultou num Trabant arrancando uma cancela em Bratislava. Culpa exclusiva dessa falta de padrão mundial no uso de cartões para abrir cancelas. Alguns são engolidos pelas máquinas e está tudo resolvido, a cancela abre e você vai embora. Outros engolem e cospem, e só quando cospem você pode sair.

No caso eslovaco, a cancela era do modelo engole-e-cospe. Mas no que engoliu, arranquei com meus 26 cavalos sem perceber que a cancela não tinha aberto, e foi graças aos excelentes freios de Gerd que uma tragédia não aconteceu. Passado o susto, deixei o carro voltar um pouco para trás, peguei o cartão que fora devolvido e, aí sim, saí.

Um problema, isso. Ou engole, ou cospe. Não dá para ficar nessa indefinição a vida toda.

O outro momento digno de nota foi a ultrapassagem inapelável sobre um Daewoo na estradinha que liga a capital da Eslováquia à capital da Áustria — de novo, registre-se, sem nenhum controle de fronteira, uma vergonha, um carimbo a menos no passaporte. Salvo engano, foi a primeira que Gerd fez em condições normais de temperatura e pressão, pegando o vácuo de uma perua Audi que por pouco eu não jantei também, graças ao limite de 70 km/h naquele trecho, limite que eu estava firmemente disposto a desrespeitar.

Felizmente, no meio do caminho apareceu um sítio arqueológico que eu, sendo muito sincero, desconhecia. Era preciso sair da 9, a estradinha, para ver de perto. Como não tinha pressa e a tarde estava agradável, fui ver de perto. Me senti numa aventura de Asterix. Carnuntum é o nome do lugar, um centro militar romano cujas primeiras referências datam do ano 6 d.C., antigo pra cacete, estabelecido por Tiberius e, depois, sede de duas legiões daquelas que os gauleses adoravam detonar depois de tomar a poção mágica.

Foi um lugar importante, porque entre os anos de 103 e 107 acabou se transformando na capital da Panônia Superior (Panônia é um ótimo nome) e virou base central das frotas do Império Romano ao longo do Danúbio. Para se ter uma ideia de como a região era promissora, a capital da Panônia Inferior se chamava Aquincum e ficava onde hoje é Buda.

Se Aquincum prosperou, casou-se com Peste e virou a capital da Hungria, o mesmo não aconteceu com Carnuntum, apesar de alguns momentos de exuberância, como o período em que lá se instalou ninguém menos do que Marco Aurélio, ele mesmo, aquele Marco Aurélio, por três anos, para comandar os exércitos de Roma numa guerra qualquer. Nessa época, estamos falando dos anos 170 d.C., Carnuntum chegou a ter 50 mil habitantes, e como essa gente precisava de circo, além de pão, construíram dois anfiteatros para entreter a turma com gladiadores se espetando e bestas-feras despedaçando pobres coitados na arena. A farra acabou uns 200 anos depois, quando Roma largou mão de Carnuntum e foi cuidar de outras glebas, e aí os bárbaros germânicos tomaram conta do pedaço.

O que sobrou é, hoje, o sítio arqueológico, e fui a um desses anfiteatros, mas estava fechado. Só que tinha uma pequena passagem no meio dos arbustos e consegui entrar para fazer uns retratos.

E depois de conhecer Carnuntum, ainda que superficialmente, achei que nada mais iria acontecer no trajeto até Viena, muito curto, menos de 70 km, “doispaliten”, como disse Gerd quando saímos de Bratislava.

Viena é uma cidade grande, ampla e feia quando se chega pelo leste, cruzando vasta área industrial cheia de depósitos, refinarias e chaminés. Zentrum era o caminho das pedras, como quase sempre, e lá fomos à cata do hotel, sem mapa ainda, mas confiando no instinto gerdiano de achar tudo. Nos perdemos na primeira tentativa, mas tínhamos passado por outro hotel da mesma rede pouco antes, voltei pelo caminho que havia feito e pedi ajuda na recepção. O cara pegou um mapa, rabiscou o caminho certo e não teríamos muitos problemas para achar.

Foi aí que aconteceu a coisa mais incrível deste breve passeio pelo Leste. Às margens do Danúbio, pronto para dobrar à esquerda na ponte indicada, notei um carrinho se aproximando pelo espelho, até emparelhar com Gerd. Acreditem ou não, era um Trabi em versão militar, com uma enorme bandeira da Alemanha Oriental espetada no estepe traseiro. O cara fez sinais para mim, acenei de volta, puxa, que coincidência, mas ele insistiu, fez mais sinais, fui atrás e paramos logo depois de atravessar o rio.

Sai um sujeito grande do Trabi militar, vem à minha janela, estende a mão e diz: sou o presidente do clube de Trabant da Áustria. Eu, incrédulo: hã? Ele: presidente do clube, e vai ter um encontro de Trabis. Eu, incrédulo: hã? Ele: e vai ser agora, é aqui perto, me segue.

Parecia mentira. Liguei para o hotel, avisei que ia chegar bem mais tarde e, ainda sem acreditar, saí atrás do Trabi militar pelas ruas de Viena, para um encontro que eu jamais saberia que existiu se não fosse aquele encontro casual de dois Trabants à beira do Danúbio no meio de um trânsito desgraçado.

Na verdade, não era exatamente um encontro de Trabis, e sim um evento sobre a DDR num centro cultural simpaticíssimo, o Aktions Radius, que todo mês escolhe um tema e faz palestras, mostras, exposições, bastante modesto, até, nada de multidões, a chamada cena cultural vienense, se é que vocês me entendem. Para descolados como o Gerd, se é que vocês me entendem. Os Trabis foram chamados de última hora pela organizadora, Martina Handler é o nome dela, e éramos sete na calçada diante do centro cultural. E não é por nada não… Gerd era o melhor de todos, virou centro das atenções, me fizeram ligar o motor umas dez vezes, um cara me explicou que se arrebentar a correia é só colocar uma meia-calça de nylon no lugar, outro me disse para nunca limpar a régua que mede o combustível na calça antes de colocar no tanque, porque a eletricidade estática pode explodir tudo e ninguém se conformava com a história da minha viagem.

Oliver Galler, o presidente do clube, estava animadíssimo. Como todo bom dono de carro velho, falou sobre preços, peças, anos, modelos, me perguntou o que eu faço da vida, se ganho bastante dinheiro, e abriu o coração. Eu era motorista do ministro até hoje, disse Oliver. Pedi demissão. Estou livre, cansei de ser escravo. Vou morar na Síria. Na Síria? É, vou trabalhar para a ONU na Síria.

E o doido sou eu.

O evento da Martina era uma graça, e aos poucos foram chegando várias pessoas empolgadas com os Trabis e as histórias da DDR. Não era muita gente, umas 70 almas, se tanto, mas tinha uns canapés, cerveja, vinho, e até um cara vestido de policial da Alemanha Oriental, Michael Höfler, dono de um Trabi 1975 cinza papirus (fez questão de dizer o nome da cor; Gerd, descobri, é “Sky blue”) e de um blog sobre a DDR.

Lá dentro, painéis com fotos de Berlim, algumas delas recentes, de gente dormindo nos bancos das praças e pedindo dinheiro nas ruas, chamando a uma reflexão sobre as vantagens e desvantagens da queda do Muro, e num determinado momento sobe ao pequeno palco uma moça muito bonita, vestida com o uniforme da FJD (Freie Deutsche Jugen, a Juventude Livre da Alemanha), entidade que reunia todos os jovens da DDR, Doreen era o nome dela, nascida em Berlim Oriental, há alguns anos vivendo em Viena.

Doreen explicou como era a vida do lado de lá, reproduziu a saudação obrigatória nas escolas, todos repetiram suas palavras, estavam lá para aprender um pouco de uma história tão recente e tão viva na memória dos alemães. Uma graça, a menina. Fui conversar com ela depois, e me contou que tinha dez anos quando o Muro caiu, que tinha muita saudade de sua infância, e que para uma criança política não existe, e por isso lembrava com muita alegria dos tempos em que ia à escola e seus pais tinham empregos seguros e estáveis.

Altiva, vigorosa, ar decidido, Doreen falou que vai voltar a Berlim, agora que terminou um longo namoro, e vai tentar reconstruir a vida lá. Foi quando escutei meu nome e era Michael, o policial, me chamando. A gente quer te dar um presente, falou, e me levou lá no palco, eu morrendo de vergonha, mas ao mesmo tempo feliz com tudo aquilo. Contou rapidamente quem eu era, o que estava fazendo ali, deve ter dito alguma coisa gozada porque as pessoas deram risada, e me passou o microfone. Fala em inglês mesmo, todo mundo entende, me tranquilizou, dando uma piscadela.

Aí fiz o maior discurso socialista da minha vida, chamando a todos de camaradas, pedindo desculpas por não falar nada de alemão exceto uma, duas e três cervejas, e assumindo uma certa maluquice na pequena aventura com Gerd. Disse também que por mais de metade da minha pobre existência vivi num mundo dividido em dois por um muro, e que essa história faz parte da vida de todos que estávamos ali, e que talvez uma das melhores formas de conhecê-la longe de qualquer teoria política era fazendo o que estava fazendo, dirigindo um Trabi pelo Leste, e todos concordaram, e disse também que não importava a ideologia de cada um dos que estavam ali, o fato é que estávamos conhecendo um pouco mais de uma história muito recente, e a história não pode ser esquecida, e se é impossível mudar o passado, é importante construir um futuro baseado em valores reais e humanos e danke.

As pessoas bateram palmas e Michael, o policial, me deu de presente uma bandeira da Alemanha Oriental, e foi tudo muito bacana, na hora de ir embora ele me guiou até a rua do hotel, nos despedimos com um abraço caloroso, e no fim das contas foi um dia bom, muito bom.