Blog do Flavio Gomes
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EU FUI

SÃO PAULO (nothing really matters) – Então foi assim. 1984, começo, talvez meio do ano. Compramos ingressos para o Rock in Rio. É bom que se explique. Comprava-se por telefone, creio. Não. Posso estar redondamente enganado, mas não era por telefone, não. Era uma agência do Banco Nacional na rua Domingos de Morais. Uma agência […]

SÃO PAULO (nothing really matters) – Então foi assim. 1984, começo, talvez meio do ano. Compramos ingressos para o Rock in Rio. É bom que se explique. Comprava-se por telefone, creio. Não. Posso estar redondamente enganado, mas não era por telefone, não. Era uma agência do Banco Nacional na rua Domingos de Morais. Uma agência que se parecia com os boxes de Jacarepaguá. Será que estou sonhando?

Eu tinha talão de cheque, já. Do Bamerindus. Minha primeira conta. Bamerindus, agência em São Caetano do Sul, ao lado de um dos portões da GM. Eu era loucamente apaixonado pela moça do caixa. Ela tinha olhos verdes e cabelos lisos castanhos. Pele morena, talvez dourada. Sempre pegava a mesma fila. Minha primeira conta bancária. 19 anos de idade. O primeiro cheque eu passei na rua. Perto do Mercado Municipal. Um cara vendia guias de ruas de São Paulo. Estacionei o carro e fiz o cheque no capô do meu Gol LS. Disso eu lembro bem. Do primeiro cheque.

Ela era linda, a moça do caixa. Só a via da cintura para cima, atrás da máquina de autenticar. Aí descobri que se ela fosse ao fichário consultar minha assinatura, ficaria de pé. E a via de costas. Às vezes, de calça branca. Linda. Descontava meus próprios cheques para vê-la de pé.

Casei-me com ela várias vezes, ao me deitar. Imaginava uma pequena casa geminada, talvez lá mesmo no ABC, onde ela devia morar. Ela devia ter um nome no crachá. Disso não me lembro.

1984. Eu estava na faculdade e tinha 20 anos. Rock in Rio. Vamos? Vamos. Juntei o dinheiro do salário que ganhava do meu pai por tocar a empresa de água mineral na rua Piauí. Odiava aquilo. De noite, fazia faculdade. De tarde, escrevia para um jornal. Saía de São Caetano para a faculdade, passava no jornal, no Centro, e chegava atrasado às aulas, carregando laudas que comprovavam meu sucesso como jornalista. Não ganhava nada no jornal.

Vamos? Vamos. Compramos os ingressos. Sim, foi na agência do Banco Nacional. Acho que foi. Venha buscar em não-sei-quantos dias. Fui buscar no dia que sabia quantos eram. Vieram num envelope. Eu já trabalhava, não podia ir a todos os shows. Os três primeiros dias e os três últimos. Algo assim.

No envelope, um adesivo. EU VOU. Colei no vidro do Gol, que tinha também um escudo do meu time e um adesivo da rádio Cidade, prateado. 96,9. Era a rádio que eu escutava no meu Rio de Janeiro com equalizador Tojo.

EU VOU. Motivo de enorme orgulho, porque ia mesmo. Aí, no fim do ano, comecei a namorar. Ela não queria que eu fosse, mas fui. Eu sou assim, faço muitas coisas que não querem que eu faça.

Fomos numa Caravan, rebocando duas motos. Uma DT 180 e uma CG 125, esta do meu tio. Ficamos em Ipanema, no apartamento da tia de um de nós. Éramos quatro, duas motos. Eu dirigia uma, com um de nós na garupa.

Não tínhamos grana. Mas tínhamos cheques. Os meus, do Bamerindus. Os de um de nós, do Banco Real. Passávamos cheques. Comprávamos camisetas, Malt 90 e Bob’s burgers. Deitávamos na lama para ouvir quem estivesse lá.

Éramos 300 mil no primeiro dia, disseram. 300 mil. Puta que pariu. 300 mil. Na lama, tomando Malt 90. Ney Matogrosso abriu o festival. Nosso Woodstock. Vaias. Ele nem aí, quase nu, abrindo os braços para a multidão. Havia metaleiros por todos os lados, porque era noite também de Whitesnake e Iron Maiden. Mas antes teve Erasmo Carlos, Pepeu Gomes e Baby Consuelo. Quem mais imaginaria juntar Baby Consuelo e Iron Maiden na mesma noite? Eu olhava tudo encantado, como se não fizesse parte daquilo tudo. Nunca me senti fazendo parte de nada. É assim até hoje. Não sou parte de nada para ninguém.

E para fechar, Queen. Quando veio “Love of my Life”, eu já tinha me perdido dos outros. E por alguma razão, fiquei chorando na chuva e na lama. Eu só tinha 20 anos e era eu quem estava cantando, ninguém mais, para 300 mil pessoas.

Minhas lembranças são muito dispersas. Acho que vi James Taylor e Rod Stewart. B52s, com certeza, Blitz também. E Paralamas, quem são esses caras? Um deles usava óculos, era tímido, mas cantava pra caralho. Lembro de Scorpions e de Yes, fechando o festival. Eu tinha uma mochila azul emborrachada. No último dia, comprei um adesivo escrito EU FUI.

11 a 20 de janeiro de 1985, foram os dez dias do Rock in Rio. Acho que estive em seis deles. Tivemos de voltar no meio da semana para trabalhar, éramos todos rapazes responsáveis, que bebiam muito, mas não fumavam maconha, nem cheiravam cocaína. Éramos medrosos e caipiras. Eu era um garoto de 20 anos que nada sabia de nada. Mas que chorou ao ouvir “Love of my Life”. Talvez eu soubesse de tudo.

Quando eu era pequeno, perguntei ao professor de religião quantos anos a gente iria viver. Ele disse que 100 anos. Era mentira, poucos vivem 100 anos, mas me fiei no mestre e 100 anos passou a ser minha ideia de vida. Daquele Rock in Rio, passaram-se 25, um quarto. Some-se os 20 que tinha, estou quase na metade, e é claro que não chegarei aos 100 anos, em que pese a convicção do professor de religião, assim já se foi a metade, ou mais.

Não contei para a menina do caixa do Bamerindus que a amava e que queria viver com ela numa casinha geminada. Acho que não fiz grande coisa até agora.