Blog do Flavio Gomes
Diários de viagem

DIÁRIOS, BAHREIN

SÃO PAULO (a pedidos) – Parece que o pessoal “gostaram” do texto logo aí embaixo sobre a China, quando eu ainda escrevia meus despretensiosos Diários de Viagem. Então vá lá. Vou pingar hoje o do Bahrein de 2004 e, no começo da semana, algum da Malásia e outro da Austrália, para empatar com o calendário […]

SÃO PAULO (a pedidos) – Parece que o pessoal “gostaram” do texto logo aí embaixo sobre a China, quando eu ainda escrevia meus despretensiosos Diários de Viagem. Então vá lá. Vou pingar hoje o do Bahrein de 2004 e, no começo da semana, algum da Malásia e outro da Austrália, para empatar com o calendário 2010. Aí, nas semanas das próximas corridas, vou resgatando os respectivos.

Há que situar o leitor sobre o texto abaixo. No caminho para a porcaria do Bahrein, pinguei em Beirute. Na volta, também. Já se vão seis anos. Depois dessa passagem pelo Líbano, deu merda por lá de novo. Poucas vezes senti, de longe, tanta pena de um país quando do Líbano depois de passar por lá.

Bem, leiam, se tiverem saco. Às vezes eu desembesto quando começo a escrever.

GRÃO-DE-BICO E AZEITE

Não passa de um puteiro.

Assim, pouco se dirá aqui do Bahrein, uma Cuba pré-revolução. Com a diferença de que em vez de caubóis, frequentam-no árabes vestidos de branco com a cabeça coberta e a hipocrisia a descoberto.

Há uma ponte de vinte e poucos quilômetros que liga o Bahrein, esse arquipélago chinfrim, à Arábia Saudita, onde os muçulmanos levam a ferro e fogo as bobagens que imaginam encontrar no Alcorão, como cobrir as mulheres da cabeça aos pés, proibi-las de trabalhar, votar, estudar, ter uma vida normal, uma vida de gente. Proíbem a bebida alcoólica, o rock’n’roll, biquínis, topless, internet, tudo. Li um livro há alguns anos, escrito por uma princesa saudita, e há muitas delas, porque os caras lá fazem filhos com várias mulheres, ainda mais os que pertencem à família real, e era de arrepiar.

Não tenho o hábito de contestar a cultura, muito menos a religião dos outros. Se as mulheres aceitam tal papagaiada e os barbudos se acham mais machos submetendo-as a todo tipo de sandice, que se danem. Mas não gosto de hipocrisia. Os fundamentalistas islâmicos, e a Arábia Saudita é a expressão mais pura do islamismo, pelo menos se acha, nos tratam, a nós ocidentais, como corrompidos pelas tentações do demônio e seus áulicos. Abominam nossos instintos libidinosos, nossa libertinagem, nossas bebedeiras e o escambau a quatro. E atravessam a ponte rumo à putaria toda sexta-feira.

Fazem exatamente aquilo que nos levará, os ocidentais, ao inferno sem escala. Vão às putas, ao álcool, à jogatina e às drogas no Bahrein. É ali do lado. Depois voltam, viram-se para Meca, rezam e mandam explodir lanchonetes e ônibus em nome de Alá. E em outros rincões, espalhados pelo mundo inteiro, há batalhões de doidos que acreditam piamente em tudo que sai debaixo das brancas e imaculadas túnicas sauditas, e detonam trens e matam inocentes e espalham o terror.

Não se trata de nenhum manifesto contra o Islã, aqui. Se as pessoas soubessem o que, no íntimo, eu penso de 11 de setembro, talvez eu fosse parar na cadeia e certamente nunca mais entraria nos Estados Unidos. Não, nada disso. Tenho idéias bem claras sobre os conflitos no Oriente Médio, e só os aceito como uma questão territorial, única e exclusivamente. Lutar por território tomado na mão grande é algo que se compreende. A história da humanidade é escrita por guerras entre tribos e essa é apenas mais uma. O problema entre palestinos e israelenses limita-se a isso, terra, e quando os dois lados admitirem que não é um confronto entre a Torá e o Alcorão, pode ser que as coisas fiquem mais fáceis.

Agora, guerra em nome de religião? Cruzadas, inquisições, mutilações, torturas, em nome de deuses?

O ser humano é um escroque mentiroso e cruel. Os árabes obrigam a esposa vestir a burqa debaixo de 50 graus de calor porque Maomé mandou, deixam-na em casa e pagam a uma ucraniana qualquer do outro lado da ponte para fazer com ela o que não fariam com uma boneca inflável. Tratam-na como se pertencesse a uma sub-raça porque têm dinheiro no bolso. Essa língua é universal, não há Alá que resista. Cortam a língua do coitado que toma um gole de uísque em Medina e enchem a cara do mesmo uísque do outro lado da ponte. E, contou-me o motorista do táxi em Manama, um indiano, algumas mulheres sauditas fazem o mesmo, atravessando a ponte escondidas do marido e caindo na putaria.

Os católicos pregam a monogamia, a virgindade antes do casamento, a castidade dos padres e uma porção de outros princípios, e fazem tudo ao contrário. O mesmo sucede com judeus, hindus, budistas, evangélicos, crentes, mórmons, godos, ostrododos e visigodos. Todos matam, roubam, cobiçam, traem. Ninguém leva religião a sério de verdade, se levassem viveríamos no paraíso. Mentem para os outros e para si mesmos. Aí, de tempos em tempos, saem se trucidando em nome de seus deuses, brandindo suas escrituras sagradas. Revezam-se nas atrocidades. Bando de hipócritas, os senhores da guerra, bando de otários, os que neles acreditam.

Portanto, o Bahrein não passa de um puteiro. Que não me impressionou em nada, de lá saí como se sai de uma casa de tolerância, como gostam de dizer os eufemistas, com um vazio imenso na alma e no bolso. Uma ilhota boiando sobre petróleo, e quase fiquei sem gasolina um dia, não achava posto. Pode algo mais estúpido do que ficar sem gasolina no Golfo? Nada a registrar. O autódromo é belo, a cidade, horrível. Estava vendo TV, entrou um repórter da CNN direto de Cabul, e eu achei que ele estava na rua do meu apart-hotel.

Ir ao Bahrein serviu para que eu desacreditasse de mais uma religião, ou, melhor, daqueles que a professam, os muçulmanos picaretas da Arábia Saudita. Fiquei com vontade de mostrar a sola do meu sapato a todos eles, me disseram que é uma baita ofensa mostrar a sola do sapato a um árabe, mas achei um tanto excêntrica essa modalidade de xingamento e não coloquei-a em prática. Deve ser mentira, fosse assim haveria altíssima taxa de câibras, distensões e estiramentos pela arábia, e não tenho conhecimento de tal fenômeno no Islã. A religião, em si, todas elas, não tem nada de errado ou certo. São elas, as religiões, apenas coisas escritas e a fé de quem as segue. Andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar. Acho que é a melhor das religiões, mas chega de digressões. Não entendo picas de religião.

O que eu queria mesmo, quando vim ao Oriente Médio, era ver buraco de bala.

Vi em Beirute, isso sim uma cidade, isso sim um país, o Líbano. Passei algumas horas na ida, outras tantas na volta. O suficiente para mergulhar no fundo da alma de um povo de verdade, e de uma cidade que, como dizem os libaneses, se recusa a ser destruída.

Mergulhei na alma de Beirute a pé, como sói fazer quando se tem pouco tempo e muita vontade de ver, tocar e cheirar um lugar. Saí andando por aquele cenário que sempre fez parte de meu imaginário, palco da primeira guerra que vi na TV, entre 1975 e 1990. Uma guerra civil complicada de se explicar, entre cristãos e muçulmanos libaneses de várias facções, israelenses, palestinos, sírios, sunitas, xiitas, maronitas, ortodoxos, jordanianos, deus e todo mundo.

Beirute, de 1975 a 1990, virou a casa da mãe joana, e 150 mil pessoas morreram, ao final do conflito que, como todos, do nada surgiu, ao nada levou. A guerra civil durou dos meus 11 aos meus 26 anos, portanto foi uma guerra marcante e todo os dias víamos Beirute no Jornal Nacional. Foi a guerra da minha adolescência, me interessava muito pelos combates entre as milícias maronitas radicais cristãs e os árabes de todos os cantos, e quando alguma garota na minha escola falava que estava perigoso andar na rua, eu dizia para ir a Beirute ver o que era bom. Elas não entendiam nada, e acho que é por isso que eu não comia ninguém, com essa mania de intelectualizar conversas banais.

Faz menos de 15 anos que a guerra acabou e Beirute é um lugar inacreditável. Está sendo reconstruída tijolo a tijolo, há algumas áreas que já justificam o apelido de Paris do Oriente Médio, outras em que os prédios continuam lá, crivados de bala, abandonados, assombrações necessárias para que os libaneses se lembrem muito bem da estupidez que fizeram e nunca mais cometam os mesmos erros.

Andei de noite pelas ruas e becos, e aqueles esqueletos silenciosos me disseram mais do que qualquer professor de história poderia contar em uma vida inteira. Ruínas contemporâneas, que aos poucos vão dando lugar aos mesmos prédios restaurados e pintados, coloridos e luminosos. Mas alguns resistem, e é preciso que resistam para falar com seu silêncio, com suas paredes esburacadas.

Um silêncio que só é cortado pelas buzinas estridentes dos Mercedes, Beirute é a cidade que mais tem Mercedes no mundo, a imensa maioria bem velha e acabada, quase todos táxis, que buzinam o tempo todo, buzinam nos cruzamentos que não têm sinal, só vi quatro, três funcionando, buzinam para te chamar na rua, mesmo se houver outro passageiro no carro, buzinam para chamar o amigo no restaurante, para mexer com a menina peituda, buzinam por buzinar, buzinam para não deixar a rua em silêncio.

Os libaneses têm muito orgulho de seu país e têm de ter, mesmo. No avião, vindo do Bahrein, estava sentado ao lado de uma moça cristã, Darine, eu perguntei o nome, e na outra ponta tinha um cara, cujo nome não sei e chamarei apenas de Azedo, porque ele cheirava assim. Darine pediu para trocar de lugar, para sentar na janela, eu desconfiei que era por causa do Azedo, e era mesmo, o cara estava partindo para cima da coitada. Não era libanês, não sei de onde era, mas falava árabe e era um cretino, cretino e azedo.

Darine me perguntou do Brasil, disse que tinha um namorado em São Paulo, outro na Holanda, um na Austrália e um no Canadá, parece. Mas que no Líbano não dava para confiar muito nos rapazes, eles são muito machistas. E falou que durante a guerra, ela era bem novinha, mas que durante a guerra, ao contrário do que eu imaginava, a vida era mais ou menos normal em Beirute, era preciso apenas tomar cuidado para não estar no lugar errado na hora errada para evitar os balaços e granadas, as emboscadas e os franco-atiradores no alto dos prédios. Ela mesmo se feriu. E foram 15 anos assim.

É incrível a capacidade das pessoas de se adaptarem a tudo, até a uma guerra passando pela janela, e quando ela acaba essas mesmas pessoas retomam a vida como se nada tivesse acontecido, e é isso que mais me impressionou em Beirute. Houve cortes profundos, mas tudo cicatrizou, e os prédios destruídos não passam disso, uma cicatriz que a gente olha para ela, se lembra mais ou menos como foi que cortou, mas não dá maior importância porque outros cortes virão.

Adorei Beirute, sentei-me num restaurante modernoso na praça do relógio, o símbolo da reconstrução (colocarei fotos, podem me cobrar), pedi hummus, uma delícia, e em volta do relógio crianças brincavam de bicicleta e velotrol, e em volta das crianças soldados armados tomavam conta de tudo, era a única coisa que lembrava minha guerra da TV, o garçom trouxe o prato com pão sírio, perguntou se estava bom, sorriu à resposta, todo mundo sorria, árabes, cristãos, pretos, brancos, japoneses, turcos, gregos, mamelucos, fenícios, romanos, assírios, mulheres de véu, outras de barriga de fora, e é assim que tem de ser o mundo, sorridente, com gosto de grão-de-bico e azeite.