Blog do Flavio Gomes
Diários de viagem

DIÁRIOS, MALÁSIA

SÃO PAULO (zerando) – Este texto é de 2003. E, com ele, estão republicados quatro Diários de Viagem relativos aos GPs já disputados neste ano: Bahrein, Austrália, Malásia e China. Nas próximas corridas, se me lembrar, vou pingando os demais. E vamos em frente que atrás vem gente. MY MALA E MY PAPER ZUPT! Estou […]

SÃO PAULO (zerando) – Este texto é de 2003. E, com ele, estão republicados quatro Diários de Viagem relativos aos GPs já disputados neste ano: Bahrein, Austrália, Malásia e China. Nas próximas corridas, se me lembrar, vou pingando os demais.

E vamos em frente que atrás vem gente.

MY MALA E MY PAPER ZUPT!

Estou sem minha mala. Essas coisas acontecem em viagens. Uma vez, na primeira corrida em Magny-Cours, em 1991, tinha comprado uma mala novinha. Nem coloquei etiqueta. Cheguei a Paris, apareceu a mala na esteira, peguei e me mandei. Quando cheguei à casa que alugo todos os anos para o GP da França, abri a mala, que não estava trancada, e por cima das roupas havia uma zorbinha e uma caneca do Mickey.

Nada de excepcional, no que concerne à zorbinha, modelo de algodão dos mais confortáveis. Mas não costumo viajar com canecas do Mickey, daí a conclusão imediata: não era minha mala. Acabei encontrando o dono, um garotinho que estava de férias com a avó em Paris e tinha comprado uma mala idêntica. O caso se resolveu sem maiores traumas, a avó mandou a minha de Paris, enviei a dele de trem, essas coisas funcionam na Europa.

Teve também o episódio da Hungria, já não lembro o ano, mas foi quando a Adriane Galisteu posou para a “Playboy”. Minha mala não chegou a Budapeste e tive de deixar com os funcionários da alfândega o código para eles abrirem e verificarem se eu não trazia nenhuma muamba probida antes de enviá-la para o hotel. Quando cheguei do circuito, de noite, a mala estava lá, na recepção. Mas todos os exemplares da “Playboy” que eu trazia para os amigos foram subtraídos na cara dura. Onanistas, esses húngaros. Ficaram frustrados, os jornalistas que aguardavam Galisteu com enorme ansiedade.

Mas desviei-me do tema, mil perdões. A mala ficou em Hong Kong, por problemas de conexão. Nada demais, essas coisas acontecem e uma hora ela chega. Arrumei algumas peças de roupa emprestadas e por sorte carregava na mala de mão a bolsa com escova de dentes da British Airways, que gentilmente me enfiou da classe executiva entre São Paulo e Londres, onde fiquei 12 horas antes de seguir para a China e para Kuala Lumpur.

Longa viagem, essa aqui. Da hora em que saí de casa esbaforido e atrasado até chegar à capital malaia, 45 horas para atravessar o mundo. Não costuma suceder nada de extraordinário nessas maratonas aéreas. Eu leio muito e procuro não conversar com ninguém, porque não há nada mais chato do que ficar falando com alguém no avião. Acabei o segundo volume do Gaspari e comecei um livro do Nelson Motta, que se auto-intitula um noir baiano. Sem julgamentos por enquanto, quanto ao segundo. O do Gaspari é muito bom. Trouxe um Saramago para a viagem de volta. É sempre um risco. Adorei “Ensaio sobre a Cegueira”, mas odiei “Memorial do Convento”.

Em Hong Kong, quando vi que perderia a conexão original, percebi que minha mala ficaria rodando pelo aeroporto e não daria tempo de embarcá-la no vôo em que me colocaram. Foi aí que conheci o solícito Raymundo, funcionário da British. Enrique Raymundo, na grafia exata, o que me causou espanto. Raimundo é nome de cearense, como diz Chico Anísio (recuso-me a usar os “y” em ambos). Mas o Raimundo em questão era filipino, não cearense. Ainda bem que há Raimundos por aí. Não fosse ele, talvez tivesse de dormir em Hong Kong.

O que, definitivamente, não seria uma boa idéia. No avião, em Londres, peguei um jornal e li que uma pneumonia atípica virou epidemia pelos lados da Ásia, com muitos casos no Vietnã e em Hong Kong. Enquanto lia, sentou-se ao meu lado um chinês, que depois vim a saber que era japonês, que tossia feito uma vaca e espirrava muito. Um risco evidente e iminente.

A sorte foi que a chinesinha da outra poltrona se mudou de lugar e o japonês foi para o corredor, o que deixou entre eu e sua pneumonia atípica uma poltrona vazia, uma barreira física das mais convenientes. Não creio ter sido contaminado, porque não tive febre, não estou tossindo e nem espirrando.

Depois de 45 horas e uma escala em Kota Kinabalu, que depois vim a saber que fica em Bornéo e onde comprei um par de óculos escuros com marca de isqueiro, cheguei à capital malaia e fui correndo à locadora de carros. Alguém já tinha avisado o malaquinho que eu ia atrasar e lá estava ele à minha espera, são simpáticos os malaquinhos. Ah, Mister Goma, how are you? Por alguma razão, esses caras de locadoras e hotéis se lembram sempre de mim do ano anterior e me chamam de Mister Goma. Mandou buscar o de sempre, um Proton, aqui só tem Proton, com 88 mil km rodados. Mas está alinhado, um carro feio, mas honesto.

Nessas 45 horas, mais da metade delas em aviões, pude comprovar algumas teses que um dia transformarei em livro. Como abrir embalagem de iogurte por exemplo, em espaço exíguo na econômica de um Jumbo. Deve-se virar o lado pelo qual o papel metálico será aberto para o banco da sua frente, porque via de regra espirra um pouco. Acho que é a altitude. Se estiver virado para você, vai sujar a camiseta. O mesmo vale para copos lacrados de suco de laranja, mas não para potes de geléia.

E mais nada digno de nota aconteceu, exceção feita, talvez e apenas, à perda do ticket do pedágio na estrada entre Kuala Lumpur e Sepang. Você pega quando entra e paga quando sai da estrada. O vidro estava aberto e o papel voou pela janela. Na cabine, expliquei o ocorrido à moça em trajes muçulmanos que me estendeu a mão para fazer a cobrança. My paper zupt, justifiquei, numa referência para ela desconhecida a um caso clássico da Fanta que zupt na Áustria, anos atrás, que um dia conto. Ela entendeu, mas quis cobrar 36,80 ringgits de pênalti, um abuso, já que o pedágio custa 6,80. But my paper zupt!, insisti, e ela abriu a cancela e me liberou.

Vou perder de novo amanhã.