Blog do Flavio Gomes
Diários de viagem

DIÁRIOS, HUNGRIA

SÃO PAULO (comprem, comprem!) – Ah, chega de dar o e-mail da Alessandra Alves. É a última vez, até a próxima corrida: aalves77@hotmail.com para comprar meu livro, que tem essas crônicas de viagens escritas séculos atrás. Como é semana do GP da Hungria, lá vai um textinho de 2004. Gosto desse, apesar de não gostar […]

SÃO PAULO (comprem, comprem!) – Ah, chega de dar o e-mail da Alessandra Alves. É a última vez, até a próxima corrida: aalves77@hotmail.com para comprar meu livro, que tem essas crônicas de viagens escritas séculos atrás.

Como é semana do GP da Hungria, lá vai um textinho de 2004. Gosto desse, apesar de não gostar de quase nada que escrevo quando releio.

MOLEQUES ORELHUDOS

Eu gosto de crianças orelhudas. As crianças, com cinco ou seis anos, começam a ficar orelhudas e assim permanecem até os oito, nove. Têm rostos redondos, como pizzas, e orelhas de abano. São lindas. As orelhas lhes conferem um ar de curiosidade que os adultos jamais seriam capazes de reproduzir. São como antenas que, acompanhadas de olhinhos quase sempre brilhantes e nervosos, tentam entender o mundo. Sem abrir muito a boca, porque estão banguelas e têm vergonha dos buracos deixados por dentes levados embora por fadas em troca de moedas. A sabedoria em sua essência: ouça muito, veja tudo, fale pouco, e entenda as coisas.

Estava na estrada que liga o autódromo à cidade, quase de noite. Noite era, mas verão europeu é aquele negócio, nove da noite e o céu está claro. Devagar, porque correr com carro ruim não tem graça. Na frente, um Wartburg. Daqueles feios, anos 80, cor indefinível, um cinza-bege ou bege-cinza, que suponho ser a cor dominante de todo o Leste europeu. Restam alguns rodando pela Hungria, Croácia, República Tcheca, Bulgária, Romênia, alguns rincões da Alemanha. Aquela cor de “Adeus, Lênin!”. Lá dentro, de joelhos no banco traseiro, o moleque orelhudo.

Não visitei o Leste quando o Leste era Leste, mais uma das lacunas de minha formação que tem mais lacunas que espaços preenchidos. Por isso, tento me transportar para os anos em que o planeta tinha graça quando vou à Hungria. Os moleques orelhudos ajoelhados no banco traseiro de Wartburgs ajudam a compor o cenário que imagino no pré-queda do Muro. Budapeste não é exatamente a descrita por Chico Buarque, que nunca esteve lá mas escreveu um livro esplêndido, ambientado às margens do Danúbio e nos subúrbios magiares. Descrita quase à perfeição. Porque não bastam os palácios, castelos, colinas e pontes que se vêem em cartões postais, nem mesmo a simplicidade espartana das moradias proletárias, para sentir uma cidade como Budapeste. É preciso mais. É preciso compreender os acrílicos de Budapeste, os revestimentos de fórmica, as cores desbotadas, as estruturas pretensamente modernas formadas por cubos encardidos e triângulos transparentes amarelados, os hotéis embolorados e a madeira que cobre as paredes e finge ser nobre. Coisas construídas e fabricadas nos anos 60 e 70 para conferir um ar de contemporaneidade e luxo a países nitidamente atrasados em relação ao exuberante Ocidente fast food.

Atrasados? Depende bastante do ponto de vista. Em termos materiais, sim. Humanos? Não sei. E hoje é tudo igual.

E para parecer iguais e modernos e prósperos há trinta anos, os países do bloco soviético se esforçavam, com os parcos meios de que dispunham, de modo a impressionar visitantes. Donde vicejam por trás da antiga Cortina de Ferro terminais de trem e ônibus com aspecto tristemente futurista, hotéis gigantescos, estádios e ginásios grandiosos, enormes torres de TV, tudo abusando dos acrílicos e dos plásticos para parecer moderno, mas que trinta anos depois mais parecem alegorias de escola de samba depois do desfile.

Era assim meu hotel, no quarteirão chique das embaixadas instaladas em Budapeste, em meio a mansões luxuosas mantidas por outras nações. Caindo aos pedaços, mas firmemente disposto a manter a pose dos tempos em que recebia orgulhosamente delegações estrangeiras, fosse para reuniões políticas, fosse para competições entre orgulhosos jovens atletas comunistas vindos de todos os lados, ou ainda para congressos de cientistas brilhantes engajados na corrida desenvolvimentista contra os, e aí o termo se aplica sem restrições, inimigos ocidentais.

O Muro caiu, meu hotel veio junto. Ainda se vê na recepção um calendário com a grife da Air France, daqueles eternos, em que se atualizam dias e meses girando pequenas roletas, datado de 1969. Apesar dos ânimos acirrados entre um lado e outro da Europa, a Air France voava para Budapeste e os tripulantes de seus Constellation possivelmente se hospedavam no meu hotel. Ficou o resquício dos bons tempos na parede da recepção, como a me dizer: olha aqui, este hotel já foi bom, rapaz; respeite-o.

Respeito, claro. No sábado de manhã, ligo o chuveiro e não há água quente. Vou ao telefone para solicitar alguma informação à recepção, e o telefone não funciona. Ligo do celular e o recepcionista me informa com a maior tranquilidade do mundo que a água quente acabou mesmo no hotel todo. Não sou um privilegiado. No comunismo, não há privilegiados. Uma caldeira pifou. Nenhum pedido de desculpas, nem previsão de retorno. Nem eu pedi, e sequer me queixei. Quando um problema não tem solução, solucionado está. Tomei banho frio. Fosse na América, me lembra um, e isso jamais aconteceria. Verdade. Alguém processaria o hotel. Desço ao salão de café-da-manhã, deliciosamente decadente, com suas luminárias formadas por numerosos globos de vidro leitoso e saleiros vazios, e ninguém, entre os hóspedes, parece preocupado com a água quente. Comem e fumam alegremente, sem maiores sinais de revolta. Resignação absoluta diante de um pequeno problema, e afinal o que é tomar um banho gelado? Minha intenção inicial de reclamar meus direitos de consumidor, de encarnar meu lado procon, foi imediatamente sepultado ao bom-dia que me dirigiu a garçonete de camisa branca e saia curta preta, bela como são as húngaras, sedutora como uma personagem de Milan Kundera, bem mais excitante que qualquer californiana bronzeada de biquíni andando de patins sem bunda e cheia de peitos.

Não tem água? Não tem água, pronto. É possível que há trinta anos alguém no hotel levasse um esporro daqueles, mas só se desse o azar de haver um graduado de algum politburo qualquer lá hospedado, o que definitivamente não é o caso em 2004. Somos todos turistas, e se queremos pagar essa miséria por um quarto num hotel outrora considerado, temos de arcar com as intempéries e conviver com elas. Quem não estiver disposto, que se enfie num Holiday Inn ou num Marriott. Também tem, em Budapeste, e nesses dá para reclamar na recepção, o freguês tem sempre razão na América e em suas sucursais. No meu hotel decadente, o cliente que se vire e se contente com o bom-dia da garota do restaurante, que vem sem grandes sorrisos ou complementos artificiais, mas carregado de solenidade e educação.

Atrás do menino orelhudo no Wartburg, notei que ele olhava para mim, o queixinho repousado sobre os bracinhos cruzados, e acenei. Sempre faço isso, micagens para crianças nos outros carros, o que vem se tornando cada vez mais difícil onde moro, porque todos os carros têm películas escuras nos vidros e não se enxerga o que há dentro. E se chegar muito perto, é capaz de amassar o pára-choque num daqueles reboques cromados. São Paulo é a cidade com maior número de reboques no mundo, embora ninguém reboque nada, não conheço ninguém que tenha um trailer ou puxe sua motocicleta numa carreta para as férias de verão. Os reboques de São Paulo mereceriam um estudo, e não sou o primeiro a notar isso, outro dia li um artigo do professor Pasquale num caderno de automóveis de um grande jornal, revoltado com a febre dos reboques. Eles só servem para foder o carro de trás quando o cara está manobrando. São o emblema do que viramos, nós da cidade grande. Foda-se você: encosta no meu carro que o reboque fura seu pára-choque. Desprezo quem tem reboque no carro e não reboca nada.

Mas não nos desviemos. Fiz caretas e sinais para o moleque orelhudo, até que dele arranquei um sorrisinho tímido, como se me dissesse, pode parar, já vi, o senhor é muito gozado mas já passei da idade, esse tipo de coisa minhas orelhas já viram antes, mas não sosseguei enquanto ele não fizesse uma careta também, e ele fez, acho que para se livrar de mim, acelerei e passei o Wartburg, feliz da vida e vitorioso. As crianças do Leste são ainda mais orelhudas, porque o corte de cabelo é ainda antiquado, socialista como só ele.

Segunda-feira, dei-me um almoço. O avião saía tarde, muni-me de um mapa cheio de reclames de pontos turísticos e encontrei um restaurante onde são servidas refeições ao estilo medieval. Já tinha estado nele anos atrás, para jantar, e foi interessante, uma balbúrdia fabulosa, garçons e garçonetes a caráter que a cada meia hora paravam de servir para encenar algum episódio com lanças e armaduras. Resolvi arriscar, encontrei o lugar fácil, se chama Sir Lancelot, e fui ao meu almoço medieval. Estava vazio, apenas uma mesa ocupada por um sujeito que me cumprimentou à entrada, um jovem que depois me disse em bom inglês que era romeno e me desejou “bon apetit”, uma manifestação de gentileza desprovida de qualquer outro interesse à qual retribuí e ele não mais me incomodou, preocupado que estava com seus afazeres, anotações em uma caderneta, talvez uma espécie de diário.

Outro dia um amigo me contou que foi à Disney, ou algo parecido, em Orlando, um daqueles parques, e a excursão incluía um jantar medieval, com apresentação da cavaleiros e o diabo a quatro. Pode existir farsa maior do que um jantar medieval na Flórida? O pior é que esses embustes encantam os turistas do mundo todo. Muito bacana, garantiu-me o amigo. Mas se é para brincar de cavaleiro da távola redonda, que se brinque onde havia cavaleiros de verdade e távolas idem. Naquele restaurante de Budapeste, por exemplo, uma taverna num porão onde o sol nunca entrou, com paredes pintadas a mão, cadeiras de madeira rústica e música de harpas, flautas e violinos saindo de uma caixa de som Sony, porque ali ninguém queria me enganar; era um almoço tipo medieval, entende? Não era medieval propriamente dito, ninguém ali fingia que era cavaleiro, e as meninas que servem, apesar das roupas meio antiquadas, amarram suas camisas acima da barriga e exibem seus piercings no umbigo. Tipo medieval, entende? Vocês que vão à Flórida que me desculpem, mas não estamos num teatro. Nesse embate medieval contra Budapeste, perdem de goleada em todos os sentidos.

A um determinado momento, éramos no salão eu, fumando, tomando vinho ao meio-dia e lendo um livro depois de devorar uma perna de frango sem molho barbecue, o romeno escrevendo alguma coisa à luz da vela de sua mesa e um casal de americanos atônitos com a fumaça e a sem-cerimônia de seus pares, um que lia e outro que escrevia, enquanto eles, certamente, esperavam por algum efeito especial, talvez o rei Arthur em 3D surgindo de uma parede em holografia para dizer thanks for coming and enjoy the ultimate experience in medieval dinner. Sorry, putada, aqui na Hungria a Idade Média não é de isopor, nem controlada por um software da Microsoft. Ponham a cachola para funcionar e imaginem as coisas.

Volto ao Brasil com muito menos raiva da Hungria do que em anos anteriores, não sou uma pessoa confiável, mudo de opinião muito rapidamente sobre tudo. O moleque orelhudo do Wartburg, o hotel sem água quente e meu restaurante medieval foram o bastante para voltar a amar Budapeste e seus acrílicos desbotados, para tentar compreender sem rancores como deve ter sido difícil, e ainda deve ser, encarar as transformações de um regime duro e cinzento para essa aparente exuberância capitalista em que as noções de posse, tempo e diversão são tão confusas e aceleradas.

Volto ao Brasil e três dias depois estou num show do Ira!, a convite do amigo que toca na banda e de quem senti o maior orgulho lá embaixo, no meio do povo. O Ira! é uma puta banda, que tem uma puta importância, cujos integrantes têm todos mais ou menos minha idade, mas que tocavam e cantavam enquanto eu achava que fazia alguma coisa de importante escrevendo. Anos 80. Duas décadas se passaram, mas ali embaixo não havia muitos quarentões, o que só comprova a perenidade de certos artistas, e os que havia se comportavam de outro jeito, diferente da garotada. Pulavam menos, mas cantavam mais e contemplavam mais. O que viam no Ira!? Eles mesmos, vinte anos atrás? Acho que sim; os nossos vinte e poucos anos, quando achávamos que éramos muito loucos, mas que nada. Loucos somos hoje, naquele tempo só queríamos namorar, pegar o carro escondido, nos apaixonar e descobrir um país que saía das sombras, sem que as sombras nos tivessem afetado muito. Portanto, era tudo muito mais simples e, ao mesmo tempo, monumental, como canta o Ira!, como vem cantando sem mudar há vinte anos, enquanto do lado de cá nós envelhecemos na cidade, mas eles continuam os mesmos garotos de vinte anos, e é isso que gostaríamos de ser sempre, garotos de vinte anos, ou moleques orelhudos em Budapeste.