Blog do Flavio Gomes
Gomes

POLIKARPOV

SÃO PAULO (e assim é) – “Polikarpov” é um nome mágico na minha curta existência. Uma espécie de Rosebud. Mas mais fácil de decifrar. Acho que foi em 2005 que um de meus mistérios internos se desvendou, quando estava em Paris fazendo não sei o quê e tive umas horinhas de folga, e resolvi ir a Le […]

SÃO PAULO (e assim é) – “Polikarpov” é um nome mágico na minha curta existência. Uma espécie de Rosebud. Mas mais fácil de decifrar. Acho que foi em 2005 que um de meus mistérios internos se desvendou, quando estava em Paris fazendo não sei o quê e tive umas horinhas de folga, e resolvi ir a Le Bourget porque gosto de aeroportos desativados e de museus com coisas de verdade. Lá, encontrei um Polikarpov.

Eu tinha o hábito de carregar um bloquinho e anotar besteiras para escrever sobre elas depois, e encontrei esse bloquinho hoje revirando coisas velhas. Creio que o ano era mesmo 2005, porque é um bloquinho da BAR que devia estar na minha mochila na época, e o calendário da F-1 que consta da contracapa é o de 2005.

Eu sempre anoto palavras-chave, achando que depois vou me lembrar do que queria escrever. Bem, faz cinco anos, e acho que esqueci a maior parte do que queria escrever. O que percebi é que esse bloquinho é o registro histórico dessa visita a Le Bourget, porque há menções a “Véronique (míssil)”, frases de De Gaulle e Miterrand sobre a era atômica e a política de dissuasão, observações, minhas, sobre a inutilidade daquele arsenal, parte dele exposto, de ogivas, mísseis, salas de controle, bunkers, abrigos, instalações secretas, coisas que no fim das contas nunca foram usadas, gastaram-se milhões, bilhões, trilhões de francos e outras moedas, e enquanto passeava no meio daquilo tudo fantasiei se algum cientista louco não teria deixado algo pronto para ser ativado, se não seria apenas o caso de ligar os fios certos para mandar o museu, o aeroporto, Paris, a França e o mundo pelos ares.

Seria uma travessura e tanto, e na dúvida achei melhor não apertar botão algum, nem juntar fios desencapados de aparência inocente.

Só sei que por 25 anos a França investiu em armas nucleares, está tudo lá em Le Bourget, para mostrar aos inimigos vermelhos que, se precisasse, acabava com o mundo sem dó, nem piedade. Um tremendo desperdício de energia e dinheiro, porque se aqueles mísseis com nomes de mulheres, como Véronique, estivessem cheios de algodão, em vez de plutônio ou qualquer coisa do tipo, daria no mesmo, porque eles nunca foram lançados, nasceram e morreram no chão.

Me lembro com carinho desse passeio solitário por Le Bourget e provavelmente voltarei lá quando puder, para tentar decifrar minhas anotações no bloquinho, com as quais fui-me deparando com certo espanto ao folhear suas páginas minúsculas. O que seria essa lista, por exemplo?

– 1 de cada 22 casas destruídas
– 1 de 6 parcialmente
– 80 cais portuários
– 9.000 pontes
– 115 gares
– 4/5 péniches
– 590.000 ton de bombas

Sei lá por que achei importante anotar esses dados, e nem tenho ideia do que são péniches, além de outras coisas que rabisquei com uma letra ilegível. Eu daria muito trabalho a um biógrafo. Ainda bem que ninguém vai escrever minha biografia, e se o fizer, melhor não consultar minhas anotações.

Mas eu falava, lá no começo, de “Polikarpov”, meu Rosebud, porque foi nessa visita a Le Bourget que vi pela primeira vez um Polikarpov de verdade, num hangar de velhos aviões da Segunda Guerra, e lá estava ele, o I-153, motivo real e comprovado de minhas inclinações políticas que foram determinadas por um modelo da Revell que ganhei de meu pai quando tinha 8 ou 9 anos, o primeiro que montei sozinho, lendo as instruções e colando as peças sem ajuda de ninguém. Disso me lembro muito bem.

Tudo na vida é meio casual. Se meu pai me tivesse dado um Spitfire da Revell, talvez eu tivesse me tornado um anglófilo fanático e vivesse hoje em Brighton servindo cerveja quente num pub fétido qualquer, mas feliz da vida. Só que eu ganhei um Polikarpov, o último dos biplanos, gordinho e curtinho, verde-oliva com uma estrela vermelha na fuselagem, e fui encontrá-lo, de verdade, num museu na periferia de Paris, um exemplar que segundo a plaqueta de identificação foi capturado na Ucrânia em novembro de 1941, não sei bem em quais condições, se caiu, se pousou, se foi abandonado, se o piloto saiu para dar uma mijadinha, não tenho a mais remota ideia das circunstâncias que levaram aquele Polikarpov a ir parar num museu meio largado de um aeroporto quase fantasma.

Mas sei que devo a ele, àquele aviãozinho de montar, minha visão de mundo meio retorcida.

O Polikarpov da Ucrânia está lá para ser visto quando eu quiser, e voltarei a Le Bourget para prestar minhas homenagens assim que for possível. O meu, o da Revell, que eu mesmo montei, pintei e apliquei os decalques, desapareceu em alguma batalha épica de minha infância e dele não se tem notícias, certamente não foi parar em museu algum.