Blog do Flavio Gomes
Brasil

A LAMA

SÃO PAULO – Tenho relutado um pouco para escrever sobre a tragédia na região serrana do Rio porque temo que vire uma discussão político-partidária aqui, algo que é desgastante para qualquer um e na maioria das vezes me dá vontade de fechar o blog, a empresa, sair do ramo e ir viver na praia sem […]

SÃO PAULO – Tenho relutado um pouco para escrever sobre a tragédia na região serrana do Rio porque temo que vire uma discussão político-partidária aqui, algo que é desgastante para qualquer um e na maioria das vezes me dá vontade de fechar o blog, a empresa, sair do ramo e ir viver na praia sem computador.

Tem muita gente discutindo o que aconteceu, tentando entender, procurando culpados (sempre se procuram culpados), refletindo sobre o que pode ser feito para que não aconteça mais. Gente preparada, gente que caga regra, gente que adora tripudiar sobre cadáveres.

As imagens aéreas que mostram as montanhas rasgadas por rios de lama falam por si. É, acima de tudo, uma tragédia natural. O planeta está cobrando a conta e não é coincidência a inacreditável série de desastres dos últimos anos: tsunami, enchentes em Santa Catarina, alagamentos diários em São Paulo, Katrina, nevascas inacreditáveis nos EUA e na Europa, Haiti, Chile, China, Austrália, Portugal, Niterói, a Terra é um planeta perigoso.

O que é inaceitável é que bilhões de habitantes desta bola azul, detentores de tanta tecnologia e conhecimento, ainda vivam de modo medieval, sujeitos à inconstância do clima e à fúria da natureza. A maioria dos fenômenos hoje é previsível, e o mundo tem dinheiro e recursos materiais suficientes para priorizar aquilo que importa: a defesa da vida.

Governantes são eleitos para resolver problemas, que resolvam. Construções em áreas de risco têm de ser removidas, ponto. Soluções? Como fazer? Problema deles, são eleitos para isso. É claro que a dimensão do que aconteceu no Rio indica que essa chuvarada toda provavelmente destruiria muita coisa, mesmo aquilo que teoricamente tivesse sido erguido em áreas seguras. E isso de fato aconteceu. Relatos de moradores da região são muito esclarecedores nesse sentido e indicam que mesmo áreas que nunca foram de risco, distantes de encostas e de margens de rios e córregos, como na zona rural de Teresópolis e Nova Friburgo, foram devastadas pela violência da enxurrada. Mas é igualmente claro que o número de vítimas seria muito menor, infinitamente menor, se medidas de prevenção tivessem sido tomadas, se a ocupação irregular de encostas e margens de rios tivesse sido reprimida desde 1500, se o Brasil não fosse um país desigual que leva seus miseráveis cidadãos a erguer um barraco onde der, porque milhões de hectares de terras estão nas mãos de poucos — pessoas físicas e grandes conglomerados industriais que bradam seus papéis de reintegração de posse a cada invasão ou ocupação de gente desesperada que não tem para onde ir.

É hora de as autoridades começarem a se mexer de verdade. Ontem vi na TV que só na cidade de São Paulo mais de 120 mil pessoas vivem em áreas impróprias, vulneráveis a qualquer chuva. Que sejam retiradas e assistidas, de maneira humana e civilizada. Cancelem a Copa e a Olimpíada e usem o dinheiro para erguer novos bairros, planejados, apropriados. Desapropriem áreas desocupadas que só servem à especulação, redesenhem as cidades, minimizem os riscos. Tirem a bunda da cadeira. Sejam machos, enfrentem os problemas de frente. Não se trata, agora, de politizar a questão. Perguntem aos familiares dos mais de 600 mortos da Serra se eles estão preocupados com o partido do governador, da presidenta ou de seus prefeitos.

Há urgência na discussão e solução desses problemas, não adianta ficar apontando o dedo para este ou aquele, é preciso entender que é cada vez maior a probabilidade de desastres naturais, tantas foram as agressões ao meio-ambiente perpetradas pelo homem nos últimos dois séculos. Não dá para fingir que são apenas fatalidades. O mundo precisa parar para balanço.

Bem, no caso do Rio, para não dizer que estas linhas nada têm a ver com a natureza original do blog, é legal ver o que está fazendo Nelsinho Piquet, arrecadando fundos e prometendo doar em dobro, do bolso, aquilo que conseguir através de seus seguidores no Twitter. Bem diferente de ações que soam oportunistas como a de Luciano Huck, que está usando uma empresa de sua propriedade para que as pessoas se cadastrem para fazer doações. OK, o dinheiro será integralmente doado, mas essa empresa da qual é sócio é um site de compras, e cadastros em sites de compras valem ouro. Por que ele simplesmente não divulga os canais convencionais para seus milhões de seguidores? Por que não doa parte de seus milionários ganhos em vez de explorar a tragédia para posar de bonzinho?

Posso estar sendo injusto, as intenções podem ser as melhores, mas esse assistencialismo com claros ganhos midiáticos e mercantis não me convence. Não há nada de errado em usar as estruturas de que se dispõe para ajudar. Redes de lojas, supermercados, restaurantes, empresas, transportadoras, todos estão ajudando. Mas ninguém está pedindo cadastro, sorry. Sei lá quanto o site de Huck e de seus sócios vai arrecadar, mas certamente será menos do que eles podem doar anonimamente e certamente os ganhos em médio prazo serão maiores para sua página de cupons na internet. Acho meio escroto isso. Mas, repito, posso estar sendo injusto, sei lá.

Ainda sobre tragédias, é bom que se diga que a Mata Atlântica sempre foi muito sensível a chuvas fortes, a constituição das montanhas é propícia ao encharcamento e deslizamentos violentos de pedras e árvores, além de terra em quantidades fenomenais. Um desastre ainda maior que o da semana passada aconteceu em 1967 na Serra das Araras, com o número de mortes estimado em mais de 1.700, conforme o relato estarrecedor deste site aqui. Gozado que ninguém está falando muito daquela desgraça também causada pela água.

Portanto, que se aprenda com os avisos que vêm do céu. Ninguém está a salvo.

* A foto acima é de Fabiana Uchinaka, publicada hoje no UOL. Muitos blogueiros me enviaram. Reproduzo apenas pela curiosidade, sem a menor intenção de fazer qualquer piadinha com os carros de que gosto. Um Lada apareceu também na TV na época em que explodiu o caso do goleiro Bruno, lembram? Foi chamado de “carro velho” num infográfico que a “Folha” publicou na época. Achei engraçado, na ocasião. Bem, carros velhos ou novos, não importa. São só carros.