Blog do Flavio Gomes
Bus Stop

BILHETE PARA A VIDA

SÃO PAULO (não tem jeito) – Registre-se: ontem, no dia da graça de 5 de outubro de 2011 da era cristã, o mais velho andou de ônibus sozinho. Pode parecer algo banal, é banal. Bem, seria mais banal ainda alguns anos atrás, eu mesmo andava de ônibus sozinho aos 10, mas estamos falando de 2011, […]

SÃO PAULO (não tem jeito) – Registre-se: ontem, no dia da graça de 5 de outubro de 2011 da era cristã, o mais velho andou de ônibus sozinho.

Pode parecer algo banal, é banal. Bem, seria mais banal ainda alguns anos atrás, eu mesmo andava de ônibus sozinho aos 10, mas estamos falando de 2011, vila de São Paulo de Piratininga, quase 20 milhões de habitantes, vila onde se explodem caixas eletrônicos, vaza gás metano, camaros e porsches atropelam e matam, balas se perdem, sequestram-se gentes, não é lá um lugar muito seguro e aprazível.

Mas apesar de não ser um lugar muito seguro e aprazível, como era um pouco mais quando eu tinha 10 anos, talvez nem tanto, talvez seja apenas nostalgia barata e fosse ainda pior, há uma vida pulsando lá fora, e não é justo que se prive ninguém dela só porque ela parece pouco segura e aprazível.

Ele fez 13 anos, puxa, como mudou neste ano… Ficou mais alto, ganhou forma, vai ao cinema às sextas, parece até que andou dando uns beijos numas meninas. Já não faz tantas perguntas, prefere procurar as respostas, começo a me achar menos útil e mais tolo.

Vou de ônibus, pai, me disse, e achei ótimo, mas disse que ia junto, e ele não se opôs. O trajeto era curto, de casa até a escola, o ponto fica ali na esquina, ele sabia o número da linha e o nome, ganhou até um bilhete único da avó, exibido de forma tão solene quanto será a chave do primeiro carro daqui a algum tempo, e não vai demorar demais, cinco anos passam rápido. Aquele bilhete, cuidadosamente guardado numa capinha plástica, é a chave que abriu as portas do mundo para ele ontem, no dia da graça de 5 de outubro do ano de 2011 da era cristã.

Não lembro das circunstâncias que cercaram minha primeira viagem-solo de ônibus. Acho que meu guia foi meu irmão mais velho, não meu pai, que nunca teve horários muito flexíveis e deve ter delegado tal função ao primogênito, dois anos mais safo que eu. A escola era a mesma, aqui é o metrô, pega assim para aquele lado, desce na estação tal, pega aquele ônibus bege e verde, Mercado da Lapa é o nome, desce lá na frente, atravessa a avenida com cuidado, boa sorte.

Eu tinha 10 anos, um passe de metrô magnético, um passe de ônibus de papel, aprendi rápido, creio, e já no segundo dia comecei a desenvolver meus truques, onde sentar, quando passar pela catraca, como lidar com a mochila, mudar a estação do metrô para pegar o ônibus mais vazio, observar se alguém puxava a cordinha para avisar ao motorista que era para abrir a porta porque eu nunca alcancei a bendita, trocar olhares com o cobrador quando isso não acontecia e ele batia a moeda no metal, código de ônibus para abrir a porta, me oferecer para segurar pacotes, qual o lado da estação para esperar o trem, qual a calçada melhor para chegar em casa, tudo se aprende muito rápido quando se é uma criança e por isso mesmo que datas como essa do primeiro ônibus se perdem no tempo.

A de ontem vai se perder também para ele, a partir do segundo dia deixa de ser uma novidade e um rito de passagem, mas para mim não, como não se perdeu o dia em que recebi seu primeiro telefonema, ou quando o mais novo viajou sozinho pela primeira vez na excursão da escola e eu fiquei lá, olhando para dentro do ônibus tentando encontrar seus olhinhos assustados, e assustado estava eu, ou quando participou da apresentação de Natal do outro colégio, vivo colecionando esses primeiros dias, esses marcos que meio sem querer apontam para onde cada um vai.

Subimos no ônibus, ele passou seu bilhete no leitor da catraca eletrônica com certa desenvoltura, conferiu o valor debitado, calculou quantas viagens ainda poderia fazer, sentou, procurou demonstrar naturalidade, misturar-se à multidão. Trocamos uma ou outra observação, evitei ficar dando conselhos e dicas de como-se-dar-bem-como-usuário-de-transporte-coletivo-na-vila-de-São-Paulo-de-Piratininga, sua única dúvida foi sobre quando apertar o botão para solicitar a parada, algo simples, sem mistério. Uma moça observava a gente sorrindo, acho que entendeu a solenidade daquele momento. Talvez seu pai tenha feito o mesmo com ela um dia, não sei.

Chegamos no ponto final, a escola logo ali, fui até a porta com ele, ficou decidido que voltaria sozinho e que me avisaria pelo telefone quando terminasse a aula de futebol, quando entrasse no ônibus, quando descesse no ponto perto de casa, quando estivesse em segurança lá em cima, quatro telefonemas programados, pois, mas eles não foram necessários, dois resolveram, estou saindo, pai, já cheguei na praça, pai, passei um ponto, me confundi, mas está tudo bem, o ônibus estava vazio, por mim pode dispensar a perua amanhã mesmo.

O mundo passou a ser outro para ele desde ontem. A cada dia a dependência dos carros velhos do pai vai diminuir, aos poucos a descoberta das linhas e dos itinerários será como encontrar o caminho das Índias, uma reedição das Grandes Navegações, em pouco tempo acontecerá o mesmo com o mais novo e a cidade pouco segura e aprazível ganhará mais dois cidadãos que aos poucos vão se incorporar a ela, dela receberão as bênçãos e as tragédias em doses mais ou menos iguais, suas ruas e avenidas serão deles, e aos poucos vamos saindo de cena.

No que me diz respeito, deixarei dois bem melhores que eu, minha modesta contribuição à humanidade.