Blog do Flavio Gomes
Brasil

ESSA GENTE CORDIAL

SÃO PAULO (deprime) – Me mandaram este vídeo pelo Twitter várias vezes hoje. O episódio aconteceu em Brasília. É gozado como uma cena dessas nos faz ter tantas reações diferentes em pouco tempo e “torcer” para um ou outro várias vezes. Num primeiro momento, quando o motoqueiro chuta o carro da moça (que a gente […]

SÃO PAULO (deprime) – Me mandaram este vídeo pelo Twitter várias vezes hoje. O episódio aconteceu em Brasília. É gozado como uma cena dessas nos faz ter tantas reações diferentes em pouco tempo e “torcer” para um ou outro várias vezes.

Num primeiro momento, quando o motoqueiro chuta o carro da moça (que a gente só vai saber que é uma moça depois, e o carro e o “estilo” da moça, de certa forma, moldam nosso julgamento), penso: que filho da puta. Que escroto filho da puta.

Faz sentido pensar assim mesmo sem ver a cara do sujeito, nem julgá-lo pela moto que habita. Quem passa algumas horas por dia no trânsito de qualquer cidade sabe que os seres do asfalto se dividem em castas que se odeiam mutuamente: ônibus, táxis, motos grandes, motos pequenas, scooters, motoboys, carrões, carrinhos, bicicletas.

Não, não se exclua, rapaz. Você, como eu, generaliza e odeia. Somos um povo muito cordial, o brasileiro. Que exercita esse ódio diário com um certo prazer. Olhe para o espelho, não minta para você mesmo, e aceite que pertence a uma ou mais castas, e que odeia outras tantas. É disso que somos feitos hoje em dia: ódio e raiva, hostilidade, agressividade.

(Com a gentil colaboração, desde ontem oficial e regularmente, da Rede Globo de Televisão, que levará aos nossos lares por três meses uma educativa programação que louva os gladiadores do terceiro milênio e os transforma em heróis da modernidade graças às suas habilidades executadas em HD que consistem em dar socos, chutes e joelhadas na cara dos outros heróis. Cotoveladas também são bem-vindas, desde que rachem a cabeça do oponente de forma a jorrar sangue sobre o logotipo da Gillette, que antigamente só tirava sangue do rosto de alguém quando a gente não sabia fazer a barba direito. E sobre o logotipo do Burger King, que poderia servir seus hambúrgueres sangrando por mal-passados “under request”, mas agora podem ser vistos salpicados de vermelho que não é catchup. E dos outros patrocinadores que não registrei. Graças à massificação dos eventos de luta, milhões de pessoas acompanharão, nos próximos três meses na TV aberta de maior audiência do Brasil, as agonias, reflexões e profundezas do pensamento de Rony Jason, Godofredo Pepey, Hugo Wolverine, Rodrigo Damm, Wagner Galeto, Anistávio Gasparzinho, John Teixeira, Marcus Vina, Francisco Massaranduba, Cezar Mutante, Daniel Sarafian, Sergio Moraes, Tiago Bodão, Delson Pé de Chumbo, Renée Forte e Leonardo Macarrão. Reforço as alcunhas mais ilustrativas do que nos espera: Jason, Wolverine, Galeto, Gasparzinho, Massaranduba, Mutante, Bodão, Pé de Chumbo e Macarrão. Até nisso o telecatch era bem mais, digamos, criativo. Eles se fantasiavam, ao menos. Pelo que li por aí, a doce Sandy, cuja virgindade foi publicamente preservada por anos a fio, será a mestra de cerimônias da nova atração global que nos mostrará o glamour das artes marciais misturadas com espancamentos semanais e discussões acaloradas sobre a técnica apurada de um joelhaço no queixo, sobre os mantras dos participantes que, e isso os absolve, treinam muito, são dedicados, creem em Deus e rezam todas as noites, se alimentam bem e seguem regras bem definidas como, por exemplo, não enfiar o dedo nos olhos do adversário nem no seu rabo, que isso é feio. Esse cardápio que a TV aberta nos oferece é dos mais democráticos e devemos ser gratos a ela, porque todos os dias, horas antes das sessões de porrada na cara, o telejornal do mesmo canal nos mostrará também como é violento o mundo e o Brasil, e como devemos nos preocupar com isso. A cada notícia envolvendo um crime de agressão entre vizinhos, uma briga numa favela que acaba com um tiro na fuça de alguém, um confronto de torcedores organizados armados de paus e pedras, que só são diferentes dos nossos gladiadores do terceiro milênio porque não tiveram a sorte de receber a graça do revestimento das câmeras, da edição rápida e sonorizada, das cotas de patrocínio, da patente registrada pela Endemol e da apresentação da Sandy e do Galvão Bueno, a cada notícia dessas o apresentador engomadinho e a apresentadora de cabelo bem arrumado e unhas bem-feitas trocarão olhares compungidos que nos dizem mais do que qualquer palavra. Esses olhares nos dizem algo como “gente, onde é que vamos parar, por que vocês, aí, não são como a gente, engomadinhos e manicurados?”, e os mesmos olhares serão trocados quando nos oferecerem uma notícia sobre a Síria, “gente, por que é que os sírios são tão violentos e intolerantes, será que eles não têm uma Ivete Sangalo para levantar a poeira?”, ou sobre as manifestações dos gregos desesperados com a falência de seu país, “gente, por que é que os gregos são tão estressados, por que não se juntam a nós, por que não escrevem para o programa do Luciano Huck para ver se ele pode fazer alguma coisa?”.)

Sigamos com nosso motoqueiro filho da puta. Ele tinha acabado de chutar o automóvel. Muitos de nós já passamos por situações semelhantes, motoqueiros que nos xingam, gesticulam, arrancam espelhos retrovisores. Normalmente eles vestem jaquetas da Califórnia Racing, usam roupas escuras, figurino Mad Max, e se julgam proprietários de faixas estreitas entre os carros que ninguém deve ocupar se não vestir a mesma jaqueta e se não sair de sua frente quando passarem buzinando. Mas o caso do nosso motoqueiro do vídeo parece ser outro, a motocicleta é grande e potente e ele não gostaria de ser chamado de motoqueiro, provavelmente odeia os motoqueiros e se denomina motociclista. Não se sabe exatamente o que o levou a dar um bico no carro da moça, mas ele deu, e a moça ficou puta dentro das calças, acelerou o carro e derrubou o indigitado, numa reação que para muitos é exagerada, para outros é justa e digna.

Nesse momento, estou torcendo para a moça. O cara não tinha nada que chutar seu carro, que história é essa? Mas a moça não se contenta e ergue o sujeito por sobre o capô, como se nele desferisse um direto de direita, mas como é moça e frágil, e o cara é grande, o recurso que encontrou, diante do coturno do cidadão, foi dar-lhe um bico com o carro, mesmo, que é o que se lhe oferecia naquele momento à guisa de arma.

Sigo torcendo para a moça, mas sendo sincero comigo mesmo reconheço que se o carro fosse outro, uma SUV blindada, por exemplo, talvez eu passasse a achar que ela é uma filha da puta maior que o motoqueiro, uma madame mimada que ganhou o carro do maridão e se acha dona da rua, do trânsito e do mundo. Mas era um Fiat desses que nem são tão caros, e o motoqueiro aparentemente não se machucou, a treta teve sequência, e quando a moça saiu do carro, depois de resistir a um ataque pela janela do sujeito que por alguma razão tentou arrancar a chave do contato, talvez tenha conseguido, notei nela uma certa fragilidade e simplicidade pelo porte físico e pelas roupas simples, camiseta branca, bermuda jeans, nada de mais, nada de menos. Embora tenha ficado chocado com o atropelamento voluntário e decidido, que pegou o motoqueiro quase indefeso, já sem sua moto, apenas portando sua armadura negra, voltei a torcer ligeiramente para a moça, que me pareceu ter tido uma reação típica de quem ficou assustado mas, ao mesmo tempo, quis mostrar a si mesmo que não, ninguém vai me assustar só porque sou mulher e frágil, esse motoqueiro que vá à puta que o pariu, e a puta que o pariu, no caso, será o capô do meu carro e o tanto que ele for capaz de jogar longe este filho da puta que só porque é homem, grande, forte e barbudo, acha que pode me intimidar e me agredir. Ele que vá intimidar a puta que o pariu.

Os ânimos parecem se acalmar um pouco e, já fora do carro, a moça saca de sua segunda arma, um celular, com o qual deve ter ligado para o marido, ou o noivo, ou o namorado, ou o pai. Impossível saber. O motoqueiro, ainda de capacete, saca de arma semelhante, um celular, também é impossível saber para quem está telefonando, talvez para algum colega policial, ou para a esposa, namorada, ou para um amigo com quem tinha combinado dar um rolê e tomar umas cervejas, volta à sua moto e é possível vislumbrar seu rosto, e nessa hora escolho de vez meu lado, é o da moça, porque o cara tem cara de mau, barba, óculos escuros, roupas de couro opressivas e realmente intimidatórias, eu ficaria igualmente assustado, não sei se o mandaria à puta que o pariu apenas verbalmente, ou com o capô do meu carro, que foi a opção escolhida pela menina. Sei que jamais seria amigo de alguém com esse figurino e essa cara, e por aí noto como são frágeis meus critérios de avaliação e julgamento, pois ele pode ter cara de mau e usar roupas de couro, mas isso não faz dele necessariamente um filho da puta escroto, pode ser um bom pai de família, um filantropo, um voluntário de causas nobres, poderia estar estressado por um motivo ou outro, pode ter sido vítima de uma enorme cafajestada da menina no trânsito alguns minutos antes, jamais saberei.

Como não sei também o desfecho dessa história e nem me interessa muito, porque já escolhi o meu lado, o da moça, por mais rasas que possam ser minhas razões. Compreendo que o que ela fez também não é lá muito prudente, ela poderia ter partido o barbudo com cara de mau em dois pedaços, quebrado sua perna, ele poderia ser cardíaco, tomar um susto e morrer, do mesmo jeito que não se deve chutar o carro de ninguém no trânsito, também não convém derrubar o outro com o carro e passar por cima dele, OK, vamos à surrada frase “estão todos errados, e quando todos estão errados, ninguém tem razão”. OK, essa frase serve bem para o episódio do vídeo, que ao fim e ao cabo não serve para muita coisa, não dá nem para afirmar que um é filho da puta e a outra não, serve apenas para mostrar como somos, os brasileiros, nós que também somos conhecidos como um povo cordial.