Blog do Flavio Gomes
Gira mondo

GIRA MONDO, GIRA

SÃO PAULO (agora vai, juro, um tema por dia, no más) – Lance Armstrong falou ontem durante mais de uma hora a Oprah Winfrey. Foi a coisa mais importante dos últimos anos no jornalismo e no esporte. Continua, ainda. A segunda parte vai ao ar esta noite. No Brasil, a entrevista está sendo levada ao […]

FSÃO PAULO (agora vai, juro, um tema por dia, no más) – Lance Armstrong falou ontem durante mais de uma hora a Oprah Winfrey. Foi a coisa mais importante dos últimos anos no jornalismo e no esporte. Continua, ainda. A segunda parte vai ao ar esta noite. No Brasil, a entrevista está sendo levada ao ar pelo Discovery, a cabo. Nos EUA, pelo canal próprio de Oprah, que depois de décadas encerrou seu programa de entrevistas e resolveu montar uma emissora.

Armstrong é um dos maiores vencedores de todos os tempos em sua modalidade. Em resultados, equipara-se a Schumacher, Slater, Sampras, Nadal, Bolt, Loeb, a lista é imensa e coloquem nela quem vocês quiserem.

Com sete vitórias na Volta da França, renascido depois de um câncer, criador de uma fundação que arrecadou fundos de vários zeros, Lance pedalou dopado a vida inteira. Construiu uma carreira erguida sobre mentiras e trapaças. Processou quem o acusou, sabendo que poderia prejudicar gente que estava dizendo a verdade. Destruiu reputações, foi escroto, cínico, dissimulado. Intimidou pessoas, arruinou carreiras. Em sua defesa, frágil, alega que o ciclismo é um poço de doping e que sem trapacear não conseguiria vencer como venceu.

Em nome do mantra mais abominável da raça humana, vencer a todo custo, fez tudo que fez, sem se importar com ética, caráter, honestidade.

A Oprah, pede desculpas a todos, ao mundo, a todo mundo. Reconhece os erros, a canalhice, se mostra arrependido, envergonhado. Já é alguma coisa mas, obviamente, não é tudo e não conserta os estragos que deixou pelo caminho nas vidas de colegas, treinadores, jornalistas, amigos, fãs, crentes, patrocinadores.

Como passei a madrugada em vigília, lendo tudo que foi possível ler sobre a entrevista e sobre todas as reflexões que o caso suscita, creio não ser capaz de dizer nada além do que já foi dito. Sugiro três links, que dão um bom quadro geral de tudo. Este aqui resume o que foi dito na entrevista. Ele fala sobre a ânsia de ganhar, a necessidade de mentir para manter tudo sob controle (no fim das contas, perdeu o controle da única coisa que importa, o caráter), a admissão de que traiu todos que o apoiaram o tempo todo. Aqui, Mauricio Stycer dá umas pinceladas sobre a competência de Oprah como entrevistadora, e não inquisidora. E, aqui, uma bela e sensível “pensata” do Victor Martins sobre doping, esporte, comportamento.

Mas quem tiver tempo e paciência deverá ler este texto aqui, também, indicado pela Juliana Tesser, do Grande Prêmio. Trata-se de um doloroso, amargo mesmo, desabafo do jornalista Rick Reilly, premiado colunista da ESPN que durante anos cobriu ciclismo e acompanhou toda a carreira de Armstrong.

Reilly foi um dos que sempre bancaram a lisura de Lance, por mais que dela desconfiasse, baseado em dois fatos: 1) ele nunca foi pego em exame algum; e 2) Armstrong negava tudo a ele, Reilly, olhos nos olhos. “Fui usado”, resume. E se pergunta: devo perdoá-lo?

Trata-se de trazer ao microcosmo do jornalista uma questão que é bem mais ampla, claro. Ele se sente traído, destroçado por ter, durante anos, enganado milhões de leitores e telespectadores, por ter defendido o que agora se sabe que é indefensável. Mas, muitas vezes, esses exemplos são os melhores para demonstrar as dimensões que certas escolhas pessoais acabam alcançando nas vidas de tanta gente (vejam esta entrevista de Mike Anderson, seu ex-mecânico; é estarrecedora). No caso de Armstrong, a decisão pessoal, única e intransferível, de ser um filho da puta no esporte.

Reilly acreditou no que sua intuição dizia. Com alguma pureza d’alma, fiou-se no olhar de quem falava para ele olhando nos olhos. Talvez tenha sido criado assim, para acreditar nas pessoas. Não sei se é um ingênuo, um bobalhão, ou se — sempre cabe a função de advogado do diabo — assumiu esse papel de defensor público do ciclista em troca de uma proximidade com o ídolo-fonte-celebridade de que outros jornalistas, possivelmente, nunca desfrutaram. Até onde o colunista se culpa, também? Por ter traído seu público e sua profissão em nome da intimidade com aquele de quem todos queriam ser íntimos? Uma amizade para proveito próprio, pois. Uma forma de doping, talvez.

As confissões de Lance, como se vê, atingem no queixo muita gente que o cercou ao longo de anos. Gente que fechou os olhos para as acusações porque, de alguma forma, era possível faturar algum — muito — em cima de seu sucesso. Até que ponto essa multidão que se apropriou das vitórias de Armstrong desconfiava de alguma coisa, mas virava a cara para seus acusadores e os desqualificava porque era mais lucrativo ficar com ele?

O doping em si, nessa história toda, é quase o de menos. O esporte de alto rendimento é infestado de substâncias proibidas, a batalha dos bons contra os maus é o famoso enxugamento de gelo. O doping, no mais das vezes, serve quase que exclusivamente para desequilibrar as coisas em termos de desempenho. Ninguém, na Alemanha Oriental, ficou rico por doping. No máximo, se trabalhou no campo da propaganda política. A novidade, e grande diferença, no episódio Armstrong é que o doping foi o detonador de uma indústria bilionária montada em torno dele, envolvendo empresas gigantescas que ganharam muito dinheiro com o ciclista, e tenho certeza que muita, mas muita gente mesmo, sabia com quem estava lidando. Revista-se esse perfil vitorioso com a sempre comovente luta contra o câncer e com a filantropia do personagem, e tem-se um herói americano incontestável. E ai de quem contestá-lo, ainda mais na América dos heróis que se superam. É atropelado sem dó.

Volto ao microcosmo do jornalista e do jornalismo. Escreve Reilly:

It’s partially my fault. I let myself admire him. Let myself admire what he’d done with his life, admire the way he’d not only beaten his own cancer but was trying to help others beat it. When my sister was diagnosed, she read his book and got inspired. And I felt some pride in that. I let it get personal. And now I know he was living a lie and I was helping him live it.

Para o colunista da ESPN, em algum momento Lance deixou de ser apenas um atleta a quem ele deveria tratar como objeto de suas reportagens e comentários, com a isenção e o distanciamento que qualquer jornalista deve ter. “I let it get personal.” A devoção embaçou sua visão.

É um pecado capital neste ofício.