Blog do Flavio Gomes
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GIRA MONDO, GIRA

SÃO PAULO (de dez em dez…) – Hoje faz 30 anos da morte de Garrincha. Há 20, passei uns dias no Rio, pela “Folha” para produzir alguma coisa sobre a efeméride. O trabalho resultou em três páginas na edição de 20 de janeiro de 1993 (que pode ser vista aqui, mas tem de folhear o […]

manegarrinchaSÃO PAULO (de dez em dez…) – Hoje faz 30 anos da morte de Garrincha. Há 20, passei uns dias no Rio, pela “Folha” para produzir alguma coisa sobre a efeméride. O trabalho resultou em três páginas na edição de 20 de janeiro de 1993 (que pode ser vista aqui, mas tem de folhear o jornal digitalmente), cujo texto principal trazia o título “10 anos depois, país se livra da culpa pelo fim de Garrincha”.

Minha tese para embasar esse texto, depois de ler tudo que havia para ser lido sobre Mané, contrariava o senso comum da época (e que acho que perdura até hoje): a ideia de que Garrincha morrera sozinho, abandonado por todo mundo. Lá pelas tantas, escrevi:

Dez anos depois, é possível reescrever a história pessoal de Garrincha com olhos menos complacentes. Mané pode ter sofrido de vários males em sua vida, mas abandono e falta de dinheiro não estão entre eles. Morreu doente por causa da bebida. O que o levou ao alcoolismo é outro papo.

Hoje, na mesma “Folha”, Ruy Castro, biógrafo de Mané (autor de “Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha”, Cia. das Letras, 1995, excepcional livro), assina a contracapa do caderno de esportes em artigo que pretende esclarecer certos mitos que cercam sua vida. Texto muito legal, como sempre. Ruy é um grande escritor. E dispara:

Daí o último e maior mito a ser derrubado sobre Garrincha: o de que ninguém o ajudou — o que, no fim da vida, ele declarou em entrevistas para a televisão, que ainda hoje são reprisadas. Mas a verdade é que Garrincha foi muito ajudado, e em várias etapas de sua vida.

Legal, 20 anos depois da minha matéria, ler Ruy Castro concordando com ela. Fiz, na época, um grande levantamento de todos os ganhos de Mané como jogador e ex-jogador, para concluir que, de fato, principalmente depois que parou de jogar, o que não faltou foram pessoas, empresas e entidades dispostas a ajudá-lo. E efetivamente isso aconteceu.

Mas o melhor desse material da reportagem da “Folha” não foi essa coisa da grana. Legal, mesmo, foi ter ido à aldeia do Mané, Pau Grande, distrito de Magé, onde ficava a fábrica da Crush e do Grapette. Quem toma Grapette, repete. E dessa visita à pequena vila resultou o texto aí embaixo, minha crônica da última página da revista “ESPN” publicada em dezembro. Para quem não leu, está aí.

Após o sinal, diga seu nome e a cidade…

Foi lendo a última edição da revista ESPN que me lembrei de um fato curioso envolvendo Garrincha. Não o Mané propriamente dito, que não cheguei a conhecer. Nem vi ao vivo, embora morasse no Rio em 1973, quando fizeram para ele um jogo de despedida no Maracanã, com mais de 130 mil pessoas nas suas inesquecíveis arquibancadas, cadeiras azuis e geral. Quando Garrincha morreu, em 1983, eu ainda estava na faculdade, dando minhas cabeçadas e rabiscando colunas semanais de torcida organizada num jornal esportivo, o extinto “Popular da Tarde”.
Dez anos depois, já na “Folha”, me mandaram ao Rio para levantar alguma boa história sobre a efeméride, uma década de sua morte. Era janeiro, um verão escaldante, e teria uns quatro ou cinco dias para escrever sobre o anjo das pernas tortas.
Fiz um roteiro mais ou menos, que incluía General Severiano, Copacabana, Bangu e Pau Grande, distrito de Magé, onde Garrincha passou a infância, deu seus primeiros dribles e tomou seus primeiros goles — se bem me lembro da biografia escrita por Ruy Castro, isso aconteceu quando ele era ainda criança, porque seus pais, ou tios, ou avós, ou sei lá quem, achava que cachaça acalmava moleques que faziam muita arte.
Aluguei um carro e com surpreendente desenvoltura saí pela cidade. Não errei um caminho sequer, algo espantoso para uma época sem GPS. Época em que cérebros e memórias funcionavam melhor que satélites.
Entrevistei bastante gente, entre elas os médicos que o atenderam nos últimos dias de vida, além de companheiros de Botafogo e seleção, como o preparador físico e técnico Paulo Amaral, que teve papel importantíssimo na vida do Mané.
A última escala era Pau Grande, uma encantadora vila operária aos pés da Serra dos Órgãos, onde o tempo parece ter parado no século 19, e creio que seja ainda assim. Fui sem nenhum contato, disposto apenas a passar o dia onde Mané nasceu e conversar com pessoas que o conheceram, visitar os lugares por onde ele andava, pescava, vivia.
Levantei um ótimo material, fizemos grandes fotos, e no fim da tarde era hora de dar retorno ao jornal, telefonar para descrever o andamento da reportagem e avisar que tudo estaria pronto para a edição do dia 20 de janeiro, uma quarta-feira. Não tínhamos celulares, e para ligar para a redação fiz aquilo que todo mundo fazia: fui atrás de um orelhão.
Encontrei um diante do Bar do Dódi, que também deve estar lá até hoje — ambos, bar e orelhão. Liguei a cobrar. “Após o sinal, diga seu nome e a cidade de onde está falando”, me orientou a mensagem gravada. “É o Flavio, de Pau Grande”, obedeci. Fui muito específico na localização, poderia ter dito Magé, a cidade, mas optei pelo distrito e falei “Pau Grande” assim mesmo, com P e G maiúsculos, mas do outro lado a menina que atendeu, repórter nova que tinha acabado de ser contratada, bateu o telefone na minha cara.
Deve ter caído, concedi, e liguei de novo, repetindo o procedimento: Flavio, de Pau Grande, agora com ênfase na vírgula e uma pausa sutil que não deixaria dúvidas sobre onde estava naquele momento. Desta vez, ouvi impropérios e desaforos da mesma voz feminina, ameaçando me denunciar ao editor, ou quem sabe, ao Ministério Público. E antes de levar uma batida de telefone de novo na cara, ainda pude ouvir “só porque cheguei agora ele acha que pode falar qualquer merda na minha orelha, e ainda é casado, o desgraçado!”.
Na terceira ligação, disse apenas que era o Flavio, do Rio de Janeiro.

FLAVIO GOMES, 48, continuou a fazer ligações a cobrar para o jornal, mas desde então passou a dizer apenas o nome do Estado ou do país de onde estava falando, tendo tido apenas um problema posterior, quando foi cobrir uma corrida de rua em Pau, na França.