Blog do Flavio Gomes
Gira mondo

GIRA MONDO, GIRA

SÃO PAULO (zero esperança, como sempre) – Hoje foi um dia particularmente fértil para aqueles que, como eu, esperam não muito mais do futuro que alguém que seja capaz de dar um comando “reinicializar” no planeta. Começo o dia abrindo o jornal que assino, a “Folha”, para dar de cara com a desonestidade editorial de […]

SÃO PAULO (zero esperança, como sempre) – Hoje foi um dia particularmente fértil para aqueles que, como eu, esperam não muito mais do futuro que alguém que seja capaz de dar um comando “reinicializar” no planeta.

Começo o dia abrindo o jornal que assino, a “Folha”, para dar de cara com a desonestidade editorial de uma casa onde já trabalhei, e muito me orgulhava disso: a chamada da Primeira Página (“Manual da Folha”, em maiúsculas, ainda me lembro) falando sobre a multidão que acompanhou o cortejo fúnebre do presidente Chávez. O texto fala em “dezenas de milhares” de pessoas.

“Jornalismo é precisão” era um mantra da gente na época. Em nome dele, o jornal até criou o DataFolha e, dentro do instituto de pesquisas, desenvolveu métodos para calcular multidões. Quando fala em “dezenas de milhares”, suponho que quem redigiu o texto tenha determinado, sem grandes dúvidas, que nas ruas de Caracas havia, no máximo, 99.999 pessoas. Dezenas de milhares. Uma pessoa a mais já seria uma centena de milhar. Assim, fiquemos com as 99.999. Porque se dissermos que são milhões, como vamos explicar aos nossos leitores que o cara que chamamos de “ditador”, “populista”, “excêntrico”, “bufão” e outras coisas mais seja capaz de levar tanta gente às ruas para chorar sua morte? “Dezenas de milhares!”, deve ter gritado uma daquelas novas sumidades do jornalismo-coxinha quando o fechador da Primeira Página perguntou “quantas pessoas acompanharam essa merda?”.

Vejam nestas fotos aqui as dezenas de milhares. Comparem com os dois milhões do réveillon da Paulista, ou os cinco milhões da queima de fogos em Copacabana.

“Ah, Gomes, você é chato, a foto da Primeira Página mostrava uma boa multidão”, vai dizer alguém. OK, pode ser. Mas o texto era bem claro: dizia que eram “dezenas de milhares”. Assim, tira-se o impacto da imagem. “Puxa, bastante gente, mas no réveillon da Paulista tem mais”, deve ter pensado o coxinha classe média quando viu o jornal enquanto tomava sua xícara de Nespresso.

Não sou bobo. E por não ser bobo, quase rasguei o jornal quando vi, nas páginas internas, esta foto aqui:

Eu era um bom fechador de jornal. Sabia quando uma foto era boa, e tinha completa noção de que uma foto de jornal deve trazer alguma informação, antes de ter algum valor estético. Uma foto de jornal deve complementar um texto. Deve ser bem cortada. Deve ser útil.

O corte dado nessa foto aí em cima não faz nada disso. Antes, mentiu ao leitor. Nela, aparecem menos de 50 pessoas. Não há detalhe nenhum na imagem que justifique a aproximação. Não se mostra o carro funerário simples, nenhuma expressão de dor, nenhum gesto improvável, nenhum olhar expressivo, nada. Apenas diminui a importância dela. Porque a foto original, na verdade, deveria ser algo como essa aí embaixo.

Como disse, não sou bobo. Sei quando há má-intenção de alguém em algum ato. O corte dessa foto, no jornal, foi mal-intencionado. Uma mentira, um escárnio.

(Ainda sobre a postura da ex-grande mídia brasileira sobre Chávez, julgo ESSENCIAL este texto do Paulo Nogueira e o vídeo que o acompanha. Dispam-se de seus pré-julgamentos e leiam. E vejam.)

E foi assim que começou o dia, com irritação. Que só aumentou depois da barbaridade da torcida do Palmeiras agredindo jogadores no aeroporto de Buenos Aires, e depois com a anulação da pena ao Corinthians (a vida de Kevin custou um jogo de portões fechados e uma multa de US$ 200 mil; e o clube disse que ainda vai recorrer da proibição de venda de ingressos aos seus torcedores para jogos fora de casa por 18 meses), e um pouco mais tarde com a confirmação de um pastor homofóbico e racista para presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, acompanhada de um vídeo em que ele arranca mil reais de um cadeirante num culto de sua igreja, que nem sei qual é.

Como se diz de forma muito breve no Twitter, #sóderrota.