Blog do Flavio Gomes
F-1

SEPÂNGUICAS (4)

SÃO PAULO (climão manêro) – Vettel versus Webber. Vamos aos fatos. Reta final de uma corrida e depois de mais de 40 voltas, por uma série de circunstâncias que fogem ao controle de uma equipe, lá estão seus dois pilotos em primeiro e segundo. Cada um fez seu trabalho da melhor maneira possível, e no […]

sepanguicas4SÃO PAULO (climão manêro) – Vettel versus Webber.

Vamos aos fatos.

Reta final de uma corrida e depois de mais de 40 voltas, por uma série de circunstâncias que fogem ao controle de uma equipe, lá estão seus dois pilotos em primeiro e segundo.

Cada um fez seu trabalho da melhor maneira possível, e no fim das contas os adversários — estamos falando, afinal, de uma equipe de dois pilotos, dois engenheiros, um chefe, um projetista, um guru e centenas de mecânicos e técnicos — já não ameaçam mais.

OK. Aí alguém entra no rádio do cara que está em primeiro, Webber, no caso, e avisa: mude o mapa do motor, baixe as rotações, poupe a bagaça. “Multi 21” foi a instrução. A nós, não importa muito decifrar o código mencionado por Webber na ante-sala do pódio. “Multi 21” pode ser qualquer coisa, e os pilotos sabem o que é. Basta fazer uma tradução livre: pode relaxar, porque a orientação vale para os dois. E significa, basicamente: “baixem” os motores, não briguem e vamos assim até o final. O 2 chega na frente do 1. “Multi 21”. Não importa. Eles sabiam o que tinham de fazer.

Aí, um dos dois não acata a instrução. No caso, Vettel. E coloca o outro numa situação de desigualdade, sem que ele saiba. Exagerando, seria algo como ter um motor com dois cilindros a mais. O que está na frente, Webber, acredita que o que está atrás, Vettel, fez o mesmo e “desligou” dois cilindros. Mas o que está atrás não fez o mesmo.

Aí é sacanagem. O que é combinado não é caro, diz o ditado. Se Webber soubesse que Vettel não tinha colocado seu motor para baixo, que não tinha entrado em “modo Multi 21”, não colocaria o seu, também. E teria chances iguais de ganhar a corrida. Aí aparece Vettel babando e acontece a briga — linda — na pista. Uma briga desigual, porém.

Na origem de tudo, está a atitude das equipes. O medo de acontecer algum imprevisto é que leva a esse tipo de instrução. Se esses caras falassem menos e tivessem menos paúra, a vida seria melhor e as coisas se resolveriam onde devem se resolver: na pista.

Em 1989, Senna e Prost viraram inimigos em Imola porque o combinado com a McLaren era que um não atacaria o outro nas primeiras voltas, quando a chance de dar alguma merda é enorme. Mas Senna não obedeceu. E deixou Prost em desvantagem. Passou e ganhou. Prost ficou puto. Porque se soubesse que Senna não faria o que tinha sido combinado, ele também não faria.

Aí vai um pouco do caráter dos pilotos. Vettel foi sacana. Se jogasse honestamente, teria dito pelo rádio, o maldito rádio: não vou aliviar e não vou colocar meu motor para baixo, não quero saber, “Multi 21” nem fodendo. Aí alguém diria a Webber: bonitão, esquece o que tínhamos combinado e foda-se o “Multi 21”, vocês que se virem. Eu, se fosse o chefe de equipe, diria isso, desligaria o rádio e ficaria na minha. E as condições seriam iguais para ambos. Que vença o melhor.

Mas não é assim que as coisas acontecem e nem há tempo para tanta discussão numa corrida de F-1. O cara, Webber, acredita naquilo que lhe dizem pelo rádio. Na hora, não tem tempo, nem cabeça para especular o que o outro vai fazer. E se o outro não faz o que foi combinado, tem todo o direito de ficar puto.

É legal a gana de vencer, demonstrada por Senna em 1989 e por Vettel hoje? É. Mas não desse jeito. É preciso ser honesto com seu companheiro. E Vettel não foi. Insisto: foi para o ataque com uma vantagem que o outro não tinha porque acreditou naquilo que lhe falaram pelo rádio. “This is silly, Seb”, falaram para ele em determinado momento. “We told him, Mark”, disseram a Webber. Os diálogos estão aqui.

“As coisas saíram do controle”, admitiu Helmut Marko, o guru. Christian Horner, o chefe, não escondeu nada: “Pedimos aos pilotos para manterem as posições. As instruções foram claras, para todo mundo ouvir. E os pilotos tomaram suas decisões por conta própria. Os interesses deles se sobrepuseram aos da equipe. Sebastian tomou a decisão em suas mãos. Foi muito desconfortável, foi horrível de assistir”.

Webber mexeu no mapa de seu motor e baixou as rotações, reduzindo a potência, porque quando se recebe uma recomendação técnica pelo rádio, o piloto normalmente não discute. Não tem condições de avaliar nada. O time pode pedir qualquer coisa porque tem mais informações nos boxes do que o piloto na pista. A ordem pode ser ligada a consumo de combustível, a algum risco de quebra, a uma necessidade urgente de não detonar esses pneus enlouquecedores (foi o caso, hoje), a qualquer coisa. Ele tem de confiar naquilo que seu time diz pelo rádio. Como a mesma ordem foi dada a Vettel, era de se imaginar que o companheiro faria o mesmo. Só que não fez.

Sebastian percebeu o tamanho da cagada. Quando Webber chegou à ante-sala do pódio, mal olhou na cara do alemão. E soltou o tal de “Multi 21”. Adrian Newey não conseguiu esconder o desconforto. Foram todos emburrados para o pódio (Hamilton também, mas dele falaremos em outro post). Webber, logo depois, na frente do parceiro e de todo mundo, na entrevista do pódio conduzida por Martin Brundle, atirou a merda toda no ventilador. “Ele tomou sua decisão e será protegido, como sempre”, disse. “A equipe tinha me avisado pelo rádio que a corrida tinha terminado e mandou ‘baixar’ o motor.” É de se acreditar que se ele não tivesse “baixado” o motor, poderia manter a liderança.

Vettel pediu desculpas, também na frente do companheiro e das arquibancadas. “Cometi um grande erro hoje. A vitória deveria ser do Mark. Se eu pudesse desfazer o que fiz, faria isso. Sou a ovelha negra e me coloquei nessa posição.”

OK, assumiu o erro. Mas isso não dá o troféu, nem os pontos a Webber. E o que é pior para ele: coloca seu caráter como esportista em jogo. Quando é que o australiano vai poder confiar nele de novo? Nunca. Eu não confiaria. O cara que deveria ser meu companheiro não o é. É um grande filho da puta. Estou pensando com a cabeça de Webber.

A reputação de Vettel está arranhada. Tanto quanto ficou a de Senna em Imola, 1989. Só que naquela ocasião o brasileiro não se desculpou, ao menos publicamente. Ficou apenas com a fama de combativo e transgressor, o herói valente e destemido que luta contra tudo e contra todos. É bom lembrar daquela corrida antes de emitir qualquer julgamento definitivo sobre Vettel. Não acho que ele seja um filho da puta, como também não acho que Ayrton era um filho da puta apenas por um episódio. Mas acho que Vettel foi um filho da puta hoje, como Senna foi naquele GP de San Marino.

E como evitar que essas coisas aconteçam em corridas de automóvel? Uma solução fácil, mas bizarra para os dias atuais, seria proibir o rádio entre piloto e equipe. A comunicação teria de voltar a ser feita exclusivamente por placas no pitwall. Mas sejamos honestos: isso hoje é impossível tecnicamente, tantas são as informações necessárias de um lado e de outro para que um carro de F-1, tão sofisticado e cheio de detalhes, chegue ao final de uma prova andando e atendendo a todas as exigências do regulamento — como a quantidade X de combustível no tanque e tal.

Não há, pois, como evitar o que aconteceu com uma canetada. Aliás, nem há necessidade de se evitar que aconteça. Faz parte do jogo, de qualquer jogo, a instabilidade e a falibilidade do comportamento humano. Uma equipe tem o direito de pedir o que quiser aos seus pilotos. De agir como achar melhor. Os pilotos também têm o poder, em suas mãos, de fazer o que bem entenderem. E nesse moto-contínuo de tomada de decisões (isso vale para tudo, não apenas para corridas de carros), acerta-se e erra-se. Talvez a Red Bull devesse ter ficado calada no rádio, talvez não precisasse dizer “Multi 21” a Webber. Talvez Webber pudesse ter ignorado a ordem. Talvez Vettel pudesse ter acatado. Talvez alguém pudesse ter avisado Webber que Vettel não iria respeitar a instrução. Erros e acertos, certezas e dúvidas, compõem o complexo quebra-cabeças daquilo que uma querida amiga chamava de “vidão”. O vidão.

Todo mundo faz suas cagadas e é filho da puta de vez em quando. Hoje foi o dia de Vettel. Que, no fim das contas, é muito mais piloto que Webber. Mas não precisa dessas coisas para mostrar que é melhor, nem que tem uma gana infinita de vencer. Combinou, brother, cumpra. Ou discuta antes. Jogue aberta e francamente.

Quando tal vontade, a de vencer, supera a ética, o companheirismo e a honestidade, é preciso dar uma brecada. Para não virar um filho da puta incorrigível.