Blog do Flavio Gomes
F-1

“ENTÃO MANDA”

SÃO PAULO (grande cara) – Maurício Gugelmin faz 50 anos hoje. Não vou falar exatamente de tudo que ele fez em mais de 20 anos nas pistas. Rodrigo Mattar faz um relato preciso e riquíssimo de sua carreira em seu blog, e recomendo vivamente a leitura. Vou, sim, contar dois episódios que presenciei em seus […]

SÃO PAULO (grande cara) – Maurício Gugelmin faz 50 anos hoje. Não vou falar exatamente de tudo que ele fez em mais de 20 anos nas pistas. Rodrigo Mattar faz um relato preciso e riquíssimo de sua carreira em seu blog, e recomendo vivamente a leitura.

Vou, sim, contar dois episódios que presenciei em seus cinco anos de F-1, que acompanhei muito de perto. Nós estreamos juntos, aliás. No GP do Brasil de 1988. Ele pela March, pilotando, eu cobrindo, no jornal. E nenhum deles tem nada a ver com a famosa propaganda de salsicha da Perdigão, patrocinador que o acompanhou durante muito tempo. Aquela em que ele pergunta ao cara da March, no motorhome, que está preparando um cachorro-quente. “É Perdigão? Então manda!”. Virou um bordão razoavelmente popular, esse “então manda”.

Os dois episódios são de 1989. Na primeira corrida daquele ano, todas as atenções estavam voltadas para Senna. Era a abertura do Mundial, Ayrton tinha sido campeão no ano anterior, era já o maior ídolo do país, autódromo cheio, o cara na pole, mas na largada ele deixou os giros caírem, partiu mal, Patrese e Berger foram para cima e na Curva 1 o sanduíche de Senna resultou num bico quebrado e numa suspensão avariada. Ele ainda foi para os boxes, lá ficou parado por quatro voltas para arrumar tudo, voltou e terminou em 11°. Piquet, na Lotus, abandonou.

Assim, sobrou para Gugelmin a tarefa de alegrar a torcida em Jacarepaguá. E ele não decepcionou, não. Terminou em terceiro com a March azul-turquesa, colado em Prost. Fez uma corridaça, tinha largado em 12°. Então, na sala de imprensa, montada sob uma tenda num calor infernal, lá estavam os três primeiros. Mansell, estreando pela Ferrari, conseguira a primeira vitória de um carro com câmbio semiautomático na história. Aquilo mudaria os rumos da F-1. Prost, o segundo, era o grande rival de Senna, já. Não inimigo, ainda, mas bicampeão, uma estrela, um peso pesado, claro. E o garoto Gugelmin, a quem ninguém os jornalistas estrangeiros não deram muita importância. De vez em quando acontecia de alguém de equipe pequena conseguir um bom resultado, eram tempos em que muitos carros quebravam ou batiam.

Perguntas daqui, perguntas dali e uma única para Gugelmin, afinal, que respondeu e o mestre de cerimônias, diante do silêncio da sala, encerrou a coletiva. Maurício fez cara de choro e disse, em português: “Ninguém vai me perguntar mais nada?”.

Deu dó. É que a imprensa brasileira, normalmente tímida quando tem de se manifestar em inglês, deixou para falar com Gugelmin em português mesmo, após o fim da entrevista obrigatória. E, aí, cercado de repórteres locais, ele falou bastante, contou da corrida, das dificuldades, da chance de atacar Prost no fim e tudo mais. Eu estava pautado para “fazer” Gugelmin naquele fim de semana. A cobertura está aqui.

O segundo episódio é relacionado a esse vídeo aí em cima. GP da França de 1989. É uma corrida muito cara para mim, pessoalmente. Foi minha primeira cobertura fora do país, minha primeira viagem para a Europa. Cheguei a Marselha no sábado de madrugada, vindo de trem desde Madri, uma loucura completa. A gente, eu e minha futura mulher, chegou ao centro de credenciamento em Paul Ricard faltando cinco minutos para o prazo-limite de entrega dos passes. Foi quando conheci Sylvie Shannon, então assessora de imprensa da FIA, uma figura doce e querida que virou uma grande amiga — ela morreu muito jovem, em 1994 ou 1995, depois de uma feroz luta contra um câncer.

Gugelmin capotou na largada de forma espetacular. Saiu correndo para os boxes e pegou o carro-reserva. Não disse no dia, mas semanas depois falou que se não fizesse aquilo antes de ver as imagens pela TV nunca mais sentaria num carro de corrida na vida. Senna quebrou (terceiro abandono seguido; carros quebravam muito naqueles tempos) e Prost venceu, dois dias depois de anunciar que não iria ficar na McLaren em 1990. Alesi, estreante pela Tyrrell, foi o quarto. Tinha futuro, o menino.

Mas é gozado como a gente lembra de coisas aparentemente irrelevantes para o destino da humanidade quando abre as gavetas da memória. Nessa prova, acho que já contei aqui, cheguei à sala de imprensa como um completo desconhecido. Não sabia como as coisas funcionavam, onde sentar, como usar o telefone, como enviar uma matéria. Nada. Nada de nada. Eu estava de férias, na verdade. Eram minhas primeiras férias depois de anos, juntei a grana, compramos a passagem mais barata que existia, da Lan Chile, colocamos as mochilas nas costas e o Europass no bolso e saímos virando a Europa de cabeça para baixo de trem. O jornal deu uns trocos e eu ainda fiz essa corrida. Estava havia horas sem dormir, viajamos 10 horas de avião e mais 12 de trem, lembro que ficamos morrendo de medo de uns turcos que entraram na nossa cabine na fronteira entre Espanha e França, em Cerbère, de madrugada, não pregamos o olho, e em Marselha saímos a pé atrás de hotel, foi um perrengue danado. A vida era mais difícil, mas creio que mais divertida.

Pergunta daqui, pergunta dali, compreendi que poderia usar as máquinas de telex muito modernas, inclusive, mas teria de ser rápido. Boa parte dos jornalistas já usava computadores meio primitivos ou máquinas de escrever para enviar seus textos por fax. Mas telex ainda era bastante popular. Eram poucas máquinas e muita gente precisava delas. Assim, sentei-me diante de uma delas e pedi para o cara me explicar como funcionava, porque o texto não era perfurado em fita de papel, mas sim gravado num negócio chamado disquete. “Escreve tudo, e quando acabar coloca esse disquete ali, aperta essa tecla aqui para gravar, tira o disquete, me entrega que eu envio”, explicou o rapaz.

Ao meu lado estava um jornalista português, Artur Ferreira, que eu achava que era brasileiro. Pensava que era o Milton Coelho da Graça, de “O Globo”, não sei bem por quê. Artur não falava com sotaque de portuga. Na verdade, cidadão do mundo que vivia entre Portugal, Angola, Moçambique e Macau, além dos países por onde a F-1 passava, fotógrafo excepcional e repórter de texto também, sabia se expressar em “brasileiro” sem sotaque algum. Sujeito grande, alto, de longos cabelos brancos, uma figura. Nesse link aí ele aparece numa foto.

Não nos conhecíamos, mas percebi que era “brasileiro” ao ouvi-lo conversando com alguém. Fiquei na minha, escrevi minhas matérias, e lá pelas tantas o Artur pediu o auxílio de alguém porque não conseguia gravar (“salvar”, meninos) seus textos no telex, e o bonitão aqui, querendo dar uma de gentil e prestativo, se ofereceu para ajudar. Afinal, tinha acabado de aprender: escreve, coloca o disco, grava. E fui direto no botão indicado para gravar, e o Artur se apavorou e gritou “não, já fiz isso, não, vai…”, e foi. Vai foder tudo, era o que ele iria dizer, deu algum pau naquela merda e eu, em vez de gravar o texto, apaguei a porra toda. Todo o material que ele estava mandando para algum jornal de Luanda ou Maputo, sei lá, só sei que não era pouca coisa, textos gigantescos, desapareceu.

Artur deveria ter quebrado meu pescoço ali mesmo, me pouparia de muitos dissabores futuros, inclusive, mas não o fez. Suspirou, olhou para a telinha do telex (era mesmo muito moderna, aquela máquina de telex) e furiosamente começou a escrever tudo de novo. Não me disse uma palavra. Eu fiquei mais ou menos uns cinco anos pedindo desculpas a ele. Grande cara, o Artur. Grande amigo, a quem não vejo faz tempo. Ele não tem vindo mais nem para os GPs do Brasil. Saudades dele. Os portugueses estão entre os grandes amigos que fiz nesses anos todos de F-1. Mas a maioria já não viaja mais, foi fazer outra coisa da vida. A crise é brava, Portugal anda mal das pernas, as viagens são caras, enfim.

Bem, não sei como fui chegar aos portugueses num texto sobre os 50 anos do Gugelmin cujo título lembra uma propaganda de salsicha. Ficou tudo meio sem sentido. É que esse GP da França de 1989 foi importante para mim. Mais um dos meus começos nessa vida em que tudo, uma hora, acaba.