Blog do Flavio Gomes
Brasil

GIRA MONDO, GIRA

SÃO PAULO (na volta a gente vê) – Quando vi hoje na “Folha” a foto de um bombadão de tatuagem na perna arrebentando o vidro da estação de metrô e a nota contando que assim que ele logrou êxito sacou seu iPhone e registrou a façanha, fiz uma conta. Uma tatuagem daquele tamanho custa uns […]

Crédito: Lost Art
Crédito: Lost Art

SÃO PAULO (na volta a gente vê) – Quando vi hoje na “Folha” a foto de um bombadão de tatuagem na perna arrebentando o vidro da estação de metrô e a nota contando que assim que ele logrou êxito sacou seu iPhone e registrou a façanha, fiz uma conta.

Uma tatuagem daquele tamanho custa uns 400 paus. Um iPhone, uns 2 paus. Acho que é isso, no que diz respeito ao telefone. Nunca sei direito os valores e não estou muito a fim de procurar o preço. De qualquer maneira, sem considerar a jaqueta Nike que no fim das contas sempre pode ser falsa e comprada em frente à estação do metrô que estava sendo arrebentada, no xing-ling onde vivo comprando badulaques, também, havia ali um capital visível investido de 2.400 reais, o equivalente a 750 passagens de ônibus, ou de metrô, pelo valor atual e reajustado de 3,20 mangos.

Alguém que use duas conduções diárias em São Paulo para trabalhar ou estudar, o que nem é tão comum assim, a maioria precisa de mais do que isso para se deslocar nesta cidade equivocada, pagaria um ano inteiro de transporte com essa grana. O rapaz que quebrou o vidro a pontapés e registrou no seu iPhone, pois, poderia passar um ano inteiro andando de ônibus se abrisse mão da alegoria na perna e do aparelho que é capaz de, de imediato, informar àqueles que lhe são mais próximos que aquele vidro espatifado era obra de sua autoria.

Minha reação imediata foi pensar: que filho da puta. Depois, apenas: que babaca. Depois, ainda: não, não é esse filho da puta babaca que vai me fazer pensar que todos que foram às ruas ontem e na semana passada, e irão amanhã de novo, são filhos da puta e babacas.

Há, claro. Filhos da puta e babacas. O Brasil está infestado deles, por todos os cantos. Entre ricos e pobres, brancos e pretos, povo e elite, trabalhadores e vagabundos, políticos e eleitores, moradores de rua e de coberturas, traficantes e viciados, caretas e modernos, usuários de transporte público e de SUVs, se tem algo que realmente nos une, neste país de opostos, é o fato de que encontramos filhos da puta e babacas espalhados de forma razoavelmente homogênea pela sociedade.

Os protestos destes dias têm levado muita gente a buscar uma reflexão que escape um pouco ao tentador maniqueísmo e à mais tentadora ainda análise baseada em aforismos simplistas. Usar termos como vândalos e baderneiros, por exemplo. São palavras que trazem sozinhas uma carga negativa e de uso fácil. Quebrou, é vândalo. Pichou, é baderneiro. Daí à conclusão seguinte, que vândalo e baderneiro é assunto para a polícia, é um passo. E, então, justifica-se toda e qualquer atrocidade que a PM comete, e são muitas, o tempo todo. A PM adora bater. Adora esculachar. Adora jogar bombas e dar tiro de bala de borracha. Quando algum babaca filho da puta tenta tacar fogo num ônibus, então…

Só que essas atrocidades não se resumem à ação em protestos que, obviamente, fugiram do controle e já não dizem mais respeito aos 20 centavos do ônibus. Há um histórico de décadas de violência cometida pelo Estado brasileiro que é invisível à classe média encastelada. Isso que a PM faz com os vândalos, baderneiros, filhos da puta e babacas é o que sempre foi feito nas periferias, contra os pobres e pretos, sem câmeras de TV e links ao vivo — quase nunca nem vândalos, nem baderneiros, nem babacas, nem filhos da puta. É política de Estado bater e matar. Em São Paulo, quem mora aqui sabe, há anos vive-se em estado de guerra, com grupos de extermínio saindo alegremente pelas noites escuras para executar gente numa matança indiscriminada que, claro, tem troco. Muitos dos que saíram arrebentando tudo nos últimos dias fazem parte dessa massa de não-babacas e não-filhos da puta que, no seu dia a dia, são tratados como animais pela PM nas franjas da cidade. E é difícil, muito difícil, saber quem, exatamente, estava quebrando tudo por ser babaca e filho da puta e quem fazia o mesmo simplesmente porque é uma forma de dizer: não aguentamos mais.

E o que não aguentamos? Porra, a gente não aguenta tanta coisa…

Difícil, muito difícil.

No primeiro protesto, eu mesmo fiquei indignado com a quebradeira promovida por gente que, numa visão estreita e preconceituosa de minha parte, nunca pegou um ônibus na puta da vida. Tem muita gente assim nessas manifestações. Minha aversão absoluta pela violência fez com que eu tachasse imediatamente todos os participantes de branquinhos babacas que não têm o que fazer, que iriam sair do protesto postando suas fotos no Instagram e que estavam a fim, mesmo, era de aparecer no “Jornal Nacional” ou, quem sabe, ter a sorte de ter uma foto publicada num jornal ou na capa de um portal.

É óbvio que é uma visão estreita e tão babaca quanto os caras que sei que são babacas. Não dá para ser tão raso assim, porém. E estou tentando não ser, embora os tempos atuais nos levem, o tempo todo, a escolher um lado rapidinho.

Bem, meu lado é que todo e qualquer protesto e manifestação se justifica num país que trata tão mal os seus como o Brasil. Até os 20 centavos — apesar de, como já dito, parte dos que detonaram esse movimento não sejam propriamente afetados pelos 10 ou 20 reais a mais que vão gastar por mês, nem sei se gastam. É verdade. Como é verdade que é justíssimo que quem não é afetado pelos 20 centavos se manifeste e, de alguma forma, seja a voz daqueles que serão afetados e que, por uma razão ou outra, não protestam, nem se manifestam.

É evidente que a maioria dos que foram às ruas não é vândalo, nem arruaceiro, nem baderneiro. Fosse assim, uma massa de 10 mil pessoas, como a de ontem, seria incontrolável mesmo. Portanto, havia, na multidão, uma imensa maioria defendendo uma causa e querendo ser ouvida, ainda que não se saiba exatamente qual é essa causa — de novo, e agora isso está claro, não eram os 20 centavos. Transporte público gratuito, a causa? Sim, é a origem do movimento. Justo. Ouvi de um manifestante na TV um depoimento de lógica irretocável. Se o poder público constrói pontes e avenidas de graça para quem anda de carro, por que não dar transporte de graça para quem não tem carro? OK, pontes e avenidas são feitas com dinheiro dos nossos impostos, mas ninguém paga tarifa alguma para usá-las — exceto os pedágios em estradas privatizadas que fazem a alegria de consórcios bilionários. Então, que se comprem ônibus e trens com os mesmos impostos e não se cobre tarifa nenhuma de quem for usá-los.

Antes de ouvir esse rapaz resumir tão bem a questão, eu achava que transporte de graça era viagem na maionese. Pensando bem, não é. Não mesmo, num país que torrou bilhões para construir estádios e financiar um evento privado, com o qual não vai lucrar nada — não me venham com a história do turismo, da imagem do Brasil, do legado da Copa; cascata pura. Não num país que tem a cara-de-pau de erguer esses monumentos ao desperdício, mas convive com hospitais decrépitos e escolas sombrias. Que paga mal médicos e professores. Que aceita que empresários donos de empresas de ônibus se refestelem em milhões e paguem uma miséria para motoristas e cobradores, e não invistam um puto sequer nos veículos que colocam nas ruas, no conforto dos passageiros, num tratamento humano para quem é tratado como sardinha numa lata.

As coisas melhoraram no Brasil nos últimos dez anos, isso é visível. O Brasil era um país obsceno e agora é um pouco menos. Esta entrevista da Eleonora de Lucena, da “Folha”, com a socióloga Walquiria Leão Rego, que está lançando um livro sobre o Bolsa Família, é um bom exemplo de como as coisas estão mudando radicalmente longe de nossos olhos de urbanoides classe média.

Mas é pouco, muito pouco. O que se viu nas ruas de São Paulo nos últimos dias, apesar dos babacas e filhos da puta, é uma demonstração de que ninguém aguenta mais tanta iniquidade. As pessoas estão de saco cheio, cheiíssimo, de tudo. É preciso avançar, revolucionar, romper estruturas, aproveitar este momento em que a economia vai de vento em popa para consertar 500 anos de sacanagens e injustiças. É preciso ter mais coragem, bater de frente, ignorar a grita da minoria, que tem meios para se fazer ouvir, e escutar quem nunca pôde falar nada.

É preciso, em resumo, que o Brasil deixe de ser um país babaca e filho da puta como esses caras que quebram vidros e postam no Instagram, que nos fazem achar que são todos como eles, e acho que não somos, não todos.

***

PS: muita gente boa, e isso é o bom da sacra internet, escreveu nos últimos dias sobre os protestos, com reflexões que merecem ser lidas. Sugiro alguns textos abaixo:

André Forastieri – Transporte público gratuito já!
Kiko Nogueira – As faces do movimento que está parando São Paulo e Quem são e o que querem os membros do Movimento Passe Livre
Bruno Passos – Contra o aumento das tarifas de ônibus: o protesto que eu não vi pela TV
Maria Frô – Depredar a sede de qualquer partido é ato fascista
Blog Vi o Mundo – São Paulo: A intensa polêmica sobre as manifestações do Movimento Passe Livre
Lost Art – Imagens dos protestos
Mobilize Brasil – Em defesa da Tarifa Zero