Blog do Flavio Gomes
Turismo

TRABI TOUR (1)

ZWICKAU (na madrugada fria e estrelada) – Há uma possibilidade remota, bem remota, de alguém me parar na rua na Alemanha para pedir alguma informação. Não pareço alemão, apesar dos olhos azuis herdados de meu avô filho de italianos nascido em Nova York e registrado em Piracicaba. Sou baixinho, não uso sandálias com meia e […]

ZWICKAU (na madrugada fria e estrelada) – Há uma possibilidade remota, bem remota, de alguém me parar na rua na Alemanha para pedir alguma informação.

Não pareço alemão, apesar dos olhos azuis herdados de meu avô filho de italianos nascido em Nova York e registrado em Piracicaba. Sou baixinho, não uso sandálias com meia e não sei falar Hauptbanhof.

Improvável, pois, que aquelas duas saídas de um ônibus se dirigissem a mim na avenida deserta com ares de interrogação, mas foi bem o que aconteceu, o que me apavorou porque, como já dito, não falo alemão e sequer gosto de ser chamado de alemão, como alguns me chamam no Brasil — creio que já informei também que tampouco gosto de ser chamado de grande, bacana ou patrão.

Eu era o único na calçada, então era comigo mesmo. Lá vem. Perguntaram alguma coisa tirando um papelzinho do bolso, certamente um endereço que procuravam, e fui logo dizendo que não falava alemão, frase que consigo pronunciar mais ou menos, começando com Ich nicht sprich, mesmo sabendo que não é assim direito, o certo é spreche, mas já no Ich qualquer alemão percebe que não sou alemão, porque misturo o som de X com R e é uma merda.

Mas elas não eram alemãs, o que não refrescou muito porque de qualquer forma eu não teria grandes informações a fornecer, embora houvesse uma chance de ajudá-las porque eu dispunha de cinco, exatamente cinco informações para dar, caso uma delas quisesse saber: 1) onde era o encontro de Trabants; 2) a direção do Horch Museum; 3) para que lado ficava a estação de trem; 4) o preço da salsicha com pão e mostarda; e 5) o endereço do meu hotel.

Muito mais seria impossível, lamento, não sou da região, ao contrário. Não ofereci o cardápio informativo com cinco opções, porém, antevendo que com aquelas informações eu tinha pequenas chances de ser útil, e fui logo perguntando o que elas queriam saber para responder que não sabia, mas elas não queriam saber nada. Abriram um sorriso e perguntaram se eu acreditava em Deus.

Ser escolhido no meio da rua numa cidade perdida da Alemanha Oriental por duas jovens americanas, elas eram americanas, com broches no estilo Quer Emagrecer Me Pergunte Como, no início eu pensei que era disso que se tratava, não chega a ser algo muito comum para a maioria das pessoas, mas essas coisas acontecem comigo e as aceito com alguma resignação.

À pergunta, para não ser indelicado, respondi que tinha minhas dúvidas e recebi em troca um olhar de desaprovação e um cartão com uma fotografia de um casal com cara de bobos e duas criancinhas também com caras de bobos, esse era o papelzinho lá do começo desta história incrível, onde se lia Familien sind ewig!, e no verso um endereço, um telefone e, para mais detalhes, www.mormon.org/deu.

Joguei o cartão dentro da sacola que continha um tesouro de miniaturas, o oval metálico da DDR e um par de maçanetas IFA, além do crochê originalíssimo para cobrir o rolo de papel higiênico, agradeci, abri meu melhor sorriso e, considerando que minha resposta pouco animadora encerrara nosso encontro fugaz, fiz menção de me mandar imediatamente, mas as duas missionárias, jovenzinhas e determinadas, como convém a duas operárias da fé, se colocaram na minha frente em formação militar, impedindo a passagem e um possível desvio, e suspeito que se eu tentasse recuar e sair correndo, levaria uma chinela.

Você não quer ir à nossa igreja e encontrar Jesus, me perguntou a mais decidida, que parecia estar no comando daquela missão, e eu quis dizer a ela que, naquele momento, meus planos imediatos eram outros. O primeiro, dar uma mijadinha, pois tinha tomado duas cervejas desde a última. O segundo, comprar cuecas e camisetas porque perderam minha mala e não tenho a menor ideia de quando e se ela vai aparecer um dia.

Não iria meter sumidade celestial nenhuma nessa história, no entanto, mas também percebi que um simples não, não quero, seco e direto, sincero e definitivo, também não iria resolver a parada, então abri meu segundo melhor sorriso, peguei o cartão de volta, olhei para a foto do casal e das crianças com suas caras de bobos e falei puxa, claro, vou ficar com seu cartão, então, dando a entender que sim, iria à igreja delas encontrar Jesus e quem mais elas quisessem, não fosse assim teria rasgado o cartão na cara de vocês duas e dado uma gargalhada satânica, mas não hoje, lindas, numa outra oportunidade, vai ser ótimo conhecer o trabalho de vocês, missionárias mórmons que não falam alemão e estão evangelizando alemães nas profundezas da Saxônia.

Deram-se por satisfeitas, aparentemente, e aquela que ocupava a linha de frente pronta para me dar uma chinela deu um passo para o lado e fui adiante. Ainda ouvi alguma coisa como que bom poder falar inglês com você, obrigado, mas apenas acenei de costas, porque se me virasse para dar o terceiro melhor sorriso de meu estoque de fim de tarde poderia ser alvejado por um crucifixo mórmon e elas me jogariam numa banheira cheio de gelo onde eu acordaria sem meus rins.

Estou aqui com um propósito bem definido, um encontro de Trabants na cidade onde eles nasceram e foram fabricados até a reunificação das Alemanhas, em 1991. Passei a tarde no imenso estacionamento na Platz der Völkerfreundschaft, e como em todo encontro de carros antigos, o primeiro dia é de aquecimento, com a chegada dos participantes, o segundo, amanhã, é o bom e o último é de despedidas e saudade que fica.

Quando fui embora, já havia uns 100 carrinhos espalhados pelo local, e por uns 80 deles eu mataria as missionárias mórmons, o que faria com que, num eventual encontro com Jesus na igreja delas, algum tipo de reprimenda fizesse parte da recepção divina.

A imensa maioria vem da Alemanha mesmo, mas percebi algumas comitivas da Holanda, da Polônia, da França, da Checoslováquia e da Romênia. São lindos e lindas, todos. O feminino fica por conta das peruinhas, kombi no genérico, ou Universal no oficial, dependendo do gosto. Tem as atrocidades de praxe, também, como os tunados e conversíveis (não os militares, que esses eram sem capota de fábrica) com rodas cromadas e pinturas cintilantes. Por esses eu não mataria as mórmons e poderia encontrar Jesus sem grandes pecados para confessar.

Ninguém fala inglês, ou quase ninguém, porque boa parte dos donos de Trabis são alemães orientais que não se preocupavam muito em aprender a língua de um país que lhes era hostil. Mesmo assim a comunicação é possível, afinal algo nos une. Sou meio tímido, não pergunto muita coisa, mas quando abro a boca, na primeira sílaba os caras percebem que sou de algum lugar desconhecido, e quando digo que moro no Brasil e tenho um daqueles, igualzinho, dão muitas risadas e fazem cara de que não é possível, e depois olham para mim como se eu fosse biruta e dão mais risadas ainda e abrem uma cerveja quente e me oferecem e eu bebo quente mesmo. Não quente, quente. Fresca, da sombra do porta-malas.

Ao fim e ao cabo, foi um bom primeiro dia de viagem para espairecer um pouco, encerrado com um Putenbruststeak mit frischem Spargel holländischer SoBe und Krokette, onde esse B maiúsculo aí é uma letra que não sei fazer aqui no computador e que quer dizer SS, e era mesmo um puta steak, que foi o que me chamou a atenção no nome, num cardápio especial de um festival de aspargos que são bem populares por aqui, pelo visto, assim como os croquetes. Começou meio errado, o dia, com o ICE de Berlim a Leipzig atrasando meia hora, o que me fez perder a conexão para cá e acabou me jogando num outro trem para Chemnitz onde na minha frente estava sentado um rapaz meio andrógino carregando duas cabeças de manequins no colo, e ele passou a viagem toda penteando os cabelos loiros delas, atitude que reputo mórbida e desnecessária, ele poderia levar as cabeças numa sacola e deixar para penteá-las em casa.

Na Europa, de todo modo, essas coisas não incomodam ninguém, se ele quer carregar suas cabeças no colo, que carregue e ninguém tem nada com isso. Desceram, o rapaz e as cabeças, uma estação antes de Chemnitz, onde meu trem também chegou oito minutos atrasado e só não perdi o outro porque o maquinista deve ter ido ao banheiro e este saiu também um tiquinho depois do horário.

No fim deu tudo certo, falta apenas a mala.