Blog do Flavio Gomes
Turismo

TRABI TOUR (2)

BERLIM (Ich bin ein) – É o Obama, disse o homem-salsicha quando, compreensivelmente, reclamei do abusivo aumento de 15 centavos de euro na bratwurst de ontem para hoje. Como assim, o Obama? Que história é essa? Custava um euro e 35 centavos e foi para um euro e 50 centavos? 11,1% de reajuste com dízima periódica, […]

BERLIM (Ich bin ein) – É o Obama, disse o homem-salsicha quando, compreensivelmente, reclamei do abusivo aumento de 15 centavos de euro na bratwurst de ontem para hoje. Como assim, o Obama? Que história é essa? Custava um euro e 35 centavos e foi para um euro e 50 centavos? 11,1% de reajuste com dízima periódica, ainda, de terça pra quarta? Você está pensando que sou o quê, homem-salsicha? Algum tipo de cidadão apático, que só fica reclamando da vida pelo föiße-büch? (Agora que aprendi a fazer esse ß vocês estão fodidos.) Pois meu caro homem-salsicha, #verasqueumfilhoteunaofogealuta. Obama o cacete.

Claro que não disse tudo isso, é difícil verbalizar hashtags, inclusive, mas ao notar que desde a Alexanderplatz, ao longo de toda Unter den Linden e em outras praças e recantos da cidade onde os homens-salsicha atuam o aumento foi praticado, decidi que já estava mais do que na hora de realizar um protesto.

Paguei o euro e os 50 centavos, ergui o punho esquerdo — na mão direita a mostarda melecou meu dedo — e fui à luta. A adesão não foi das maiores, porém, e ainda estamos avaliando os resultados do movimento. Exceto por um bebum que bradava algo contra os Amerikanischen vestindo uma camisa preta com um mapa da África bordado no peito, ninguém se comoveu demais com minha manifestação solitária, que terminou assim que dei a última mordida na salsicha e lambi a mostarda no dedo.

Mas a semente estava plantada, e podem ter certeza que a Alemanha, depois de hoje, vai mudar. #agiganteacordou. Já desde domingo meus instintos revolucionários estavam à flor da pele, devido ao caos ferroviário no país, e essa Angela Merkel, muito bonitinha na foto pelada quando era jovem, não faz nada e se omite. Tudo começou quando deixei o hotel na cidade dos Trabis, e como tinha uma horinha de folga até sair o trem catei um táxi e fui ao Museu Horch para rever velhos amigos sobre rodas. Meu trem saía às 14h07 para Leipzig, dava tempo. Vi tudo meio na correria e pedi para a moça do museu chamar um táxi para me levar à estação, e veio o mesmo sujeito da perua Mercedes que tinha me deixado lá uma hora antes. Zwickau é pequenina e acho que deve ser comum pegar o mesmo táxi duas vezes no mesmo dia. Talvez ele seja o único taxista da cidade, o que explica o requinte do taxímetro embutido no espelho retrovisor.

Fünf minuten, disse ao motorista, velho conhecido. Estava em cima da hora, duas em ponto, sete para sair o trem. Ele entendeu o recado, disse um schacommingen, e em fünf minuten chegou à estação, e saí correndo, como de costume. Trem atrasa, mas não sai adiantado. Ia dar tempo. Mas quando entrei na estação vi no painel que a primeira partida estava marcada para 14h09, e meu trem para Leipzig ou já tinha ido embora, ou sei lá o quê.

No caso, era sei lá o quê. Voltei ao saguão da estação para ver se conseguia alguma informação, mas não tinha ninguém e o escritório da Deutsche Bahn estava fechado. Ninguém aguenta mais isso, pensei. Vou protestar contra essa pouca vergonha do transporte público alemão.

Mas antes disso vi que tinha um trem saindo para Dresden às 14h26 e pensei comigo: vou nesse. Corri para a plataforma de novo e finalmente apareceu um cabra da DB. O senhor fala inglês, cidadão? Um pouco, e mostrei meu bilhete e meu trem. Ele disse: flut. Como assim, flut? Sou fluente em algumas palavras em alemão, especialmente aquelas que se parecem com outras de idiomas que compreendo, e entendi que meu trem tinha sido cancelado por conta de alguma inundação, apesar do sol de rachar cuíca. Bom, meu senhor, se uma flut dos infernos cancelou meu trem, vou entrar nesse aí para Dresden, e se o senhor for o bilheteiro, faz o favor de aceitar. Ele riu, mas não era o bilheteiro, e entrei no trem mesmo assim. Chegando em Dresden eu decidiria o que fazer.

Sentei-me ao lado de uma moça muito bonita de meia-calça preta desfiada que estava estudando o Manifesto Futurista de 1909 num livro e em fichas escritas à mão em italiano, mas era alemã. Uma carbonária, certamente, e assim passei a chamá-la: Carbonária. Na nossa frente, John Lennon dormia na mochila e escutava música. Quando entrou um cara no vagão falando alto, mostrei meu bilhete e já fui explicando que o flut fodeu meu trem, que eu ia para Leipzig, que ia tentar salvar meu dia em Dresden, mas ele não deu bola e não era bilheteiro.

A Carbonária riu e, como boa carbonária, atenta, guardou a informação: o cara vai para Leipzig. Eu iria com ela até Dresden, Berlim, Cracóvia, Istambul, até a Mongólia, se ela quisesse, mas quando o trem se aproximava de Chemnitz Carbonária me cutucou e disse: melhor você descer aqui em vez de ir até Dresden. Tem um trem que sai daqui a pouco para Leipzig, para onde você ia. É mais perto e de lá você vai para Berlim.

Arrasado, com o coração despedaçado, obedeci a ordem e desci em Chemnitz, sem olhar para trás, sabendo que nunca mais na vida veria a Carbonária. John Lennon, à nossa frente, continuava dormindo. Ninguém mais testemunhou aquele intenso e trágico romance. Em Chemnitz, de fato, um trem estava saindo para Leipzig, mas tinha tempo, ainda, e o balcão da DB estava aberto, fui até ele, mostrei o bilhete para a senhora, apontei para meu trem original e disse: flut. Ela disse algo sobre os fluten, reemitiu meu bilhete e deu tudo certo, Leipzig, Berlim, finalmente.

Aluguei um pequeno apartamento no Leste, é mais barato que hotel, e tirando o fato de que fica no sexto andar e não tem elevador, é ótimo. Tinha jogo do Brasil, arrumei um bar por perto com telão, assisti à partida tomando caipirinha e comendo amendoim e fui dormir.

Estou há três dias aqui e tudo que faço é andar de bicicleta. Aluguei uma novinha de uma francesa simpática das redondezas, 10 euros no primeiro dia, 8 no segundo, 6 no terceiro e se eu ficasse mais uma semana era bem capaz que ela passasse a me pagar, e eu viveria o resto da vida em Berlim com dois euros a mais por dia, mas tenho de devolver amanhã porque vou embora de noite.

Obama começou a afetar meus dias tranquilos ontem, antes mesmo do episódio com o homem-salsicha, quando fui a Potsdamerplatz porque segunda-feira tinha visto um cara que carimbava passaporte com visto da DDR. Essas coisas para turistas, mas resolvi levar meu passaporte lá. Só que quanto estava chegando, notei barreiras policiais, carros blindados, centenas de agentes, tudo fechado. E nada do cara do visto da DDR, claro, porque a praça estava cercada e havia até uma barraca de campanha com detetor de metais. Que porra é essa, perguntei a uma senhora de bicicleta, e ela disse: é o Obama.

O cara ia chegar, ou tinha chegado, e em vez de se hospedar no Adlon, onde o Michael Jackson ameaçou jogar o filho pela janela, resolveu se meter no Carlton Ritz na Potsdamer Platz, o que é de um mau gosto atroz. Bem, foda-se o Obama, e segui meu caminho para o objetivo do dia que era o estádio Olímpico, gosto de visitar estádios.

E o Olímpico é impressionante mesmo, tem toda aquela história dos Jogos de 1936, do Hitler e do Jesse Owens, que estão todos carecas de saber. Mas eu não conhecia a parte de trás, Maifeld, onde o cara fazia discursos para, sei lá, 500 mil pessoas, a Torre do Sino, destruída na Guerra e reconstruída pelo mesmo arquiteto nos anos 60, a placa com os nomes dos ganhadores de medalhas, a pira olímpica, aquela coisa toda. De quebra, estava tendo um showzinho do Bom Jovi no anfiteatro que faz parte do complexo e quando subi na torre fiquei lá vendo e escutando de graça, até o zelador da dita cuja pegar o elevador para me dizer que estavam fechando, e foi minha segunda infração do dia, porque quando entrei no estádio subi no anel superior e um sujeito da Gestapo me expulsou porque ali era área de segurança.

Na hora de ir embora, o mesmo sujeito, também oficial da SS, teve de abrir o portão porque já tinham fechado e o que é que eu estava fazendo ali?

Na volta, notei que um helicóptero me seguia, obviamente do serviço secreto americano, porque àquela altura minhas três infrações — anel superior, Torre do Sino e portão fechado — já deviam ter sido reportadas ao FBI e à CIA, minha vida já tinha sido investigada desde os primeiros dias de infância na rua Divino Salvador, e portanto eu era um risco muito claro para o presidente. Mas como sou esperto, me enfiei numa rua arborizada e despistei o helicóptero, para ser novamente alcançado pelas autoridades no cruzamento da Bismarckstraße com a Ernst-Reuterplatz, onde o trânsito estava bloqueado, ninguém entrava, ninguém saía, polizei por todos os lados, agentes espalhados, atiradores de elite no alto dos prédios, cães farejadores, espiões fantasiados de mendigos e eu. De repente, vem o cortejo. Sem sacanagem, foram uns cinco minutos de carros, vans, motos e tanques de guerra disfarçados antes, duas limusines no meio (pensam que me enganam, estava na cara que era a segunda que valia), e mais cinco minutos de carros, vans, motos e tanques de guerra disfarçados depois.

Deve ser um saco ser presidente dos EUA, pensei comigo quando liberaram o trânsito e enquanto seguia com minha bicicleta pelo meio do Tiergarten pensando numa cerveja gelada. O cara não pode andar de bicicleta, nem pensar em cerveja gelada. Quando vi pela TV, mais tarde, ele saindo da limusine, fiquei espantado com a espessura da porta, coisa de um metro, quase a espessura das paredes do bunker de Hitler, cuja localização descobri meio sem querer perto do Memorial do Holocausto, um curioso estacionamento de pequenos prédios sem nenhuma indicação especial, apenas uma placa que atrai somente os mais curiosos como eu, que gostam de ler tudo que está escrito numa cidade como Berlim. Ali, naquele pequeno estacionamento, segundo os registros históricos, é que ficava o bunker onde Hitler passou os últimos dias, se matou e teve seu corpo queimado. Ali que eu digo é lá embaixo, uns bons metros em direção ao centro da Terra, mas o local foi todo explodido pelos aliados, coberto de entulho e cimento, e jamais se tornou, e acho que essa é a intenção desde sempre, um perigoso local de cultos secretos e romarias indesejáveis. Que o local da morte do maluco ensandecido fique assim, sem nenhum marco especial, sem nada que lembre sua infâmia, debaixo de um singelo estacionamento.

E nada mais aconteceu que seja muito digno de nota, talvez apenas o capote que tomei ao tentar passar com a bicicleta entre uma plataforma metálica e a mureta do Portão de Brandenburgo, que amassou o para-lama da magrela e inchou meu joelho, fora a vergonha, bem ali onde o Obama, coitado, discursou apenas para convidados VIP de pulseirinhas e, ainda por cima, atrás de um vidro à prova de balas. Deve ser realmente um saco ser presidente dos EUA, embora Kennedy e Reagan, até ele, o caubói, tenham se divertido mais em Berlim quando por aqui estiveram, dizendo inclusive algumas frases bonitas.

Amanhã é dia de seguir para o reino vizinho da França, mas antes vou à Alexanderplatz para conferir os preços praticados pelos homens-salsicha. Se a tarifa da bratwurst tiver voltado a um euro e 35 centavos, nada mais haverá a fazer e não terei mais nada para reclamar, nem com o Obama, nem com ninguém.