Blog do Flavio Gomes
Futebol

O 8 BRANCO

SÃO PAULO – Ele era alto, esguio, elegante. Clássico, não matava mal nenhuma bola. Se ela não lhe chegasse com a mesma elegância, era provável que não se esforçasse para melhorar uma tela na qual as primeiras pinceladas não insinuavam nenhuma obra de arte. Por isso, muitas vezes passava minutos alheio ao que os outros […]

eneas2SÃO PAULO – Ele era alto, esguio, elegante. Clássico, não matava mal nenhuma bola. Se ela não lhe chegasse com a mesma elegância, era provável que não se esforçasse para melhorar uma tela na qual as primeiras pinceladas não insinuavam nenhuma obra de arte. Por isso, muitas vezes passava minutos alheio ao que os outros faziam por perto. Não lhe dizia respeito, se belos não fossem os movimentos. Mas de repente, como diziam naqueles tempos, ligavam-lhe uma chave interna e a beleza surgia em forma de gols, sempre bonitos, sempre comemorados com o movimento do braço direito em um ângulo reto perfeito com o punho erguido.

Aquele enorme número oito branco bordado nas costas, então, corria em direção às arquibancadas onde ainda havia bandeiras e encantava o garoto que morava longe, no Rio de Janeiro, e só via aquilo em preto e branco numa velha Philco, imaginando as cores, não mais.

Algumas vezes o oito virou dez, e em vez de branco, foi verde. Variações sobre o mesmo tema: a bola na rede, o punho em ângulo reto, o abraço dos súditos que chegavam depois. Enéas era nosso rei e o foi até 1980, quando chegamos à decisão do primeiro turno do Campeonato Paulista.

O garoto tinha então quase 16 anos e uma já longa vida nas estradas e arquibancadas. Voltara do Rio para morar em São Paulo e aos 13, aproveitando uma viagem ao exterior do pai, que alimentava certos rigores em relação à questão, alistou-se numa pequena torcida organizada numa noite no Pacaembu, Força Jovem, jovem eu era, para envergar a camisa verde com gola e punhos vermelhos, o escudo no meio, e nas costas o pioneirismo da propaganda, Margarina Colombo.

Eu fazia parte da minoria da minoria, a pequena Força Jovem buscando seu espaço entre os rubros da Leões da Fabulosa e os alvos da Corações Unidos, a CUP, com suas épicas bandeiras brancas com o coração vermelho no centro e a Cruz de Aviz rasgando suas artérias.

Um ano depois, a mudança para o interior, não muito longe, e o futebol e o time e a arquibancada já fazendo parte da vida para o resto da vida, e o nosso negro esguio e elegante, com a oito às costas, algumas vezes a dez, sempre lá. Isso não acontece mais, eu o vira pela primeira vez quando tinha nove anos, já entrava nos 15 e ele seguia no mesmo time, o meu, e então, já não lembro bem por quê, troquei a Força Jovem, talvez porque já não fosse tão jovem assim com 15 anos, pelos Leões com suas camisas vermelhas sem patrocínio de margarina, mas respeitados e admirados em todo o Estado. E o ônibus da Benfica Turismo, que nos levava ao interior em caravanas, passou a fazer paradas obrigatórias na Anhanguera, ou na Bandeirantes, ali na altura de Campinas, para pegar o garoto que morava na cidade. E na volta de Araraquara, Rio Claro ou Ribeirão Preto, ele deixava o garoto na beira da estrada, onde o pai o resgataria no horário combinado.

Estávamos na decisão do primeiro turno de 1980, classificados com alguma antecipação graças à campanha irretocável, e um turno de Campeonato Paulista, meninos e meninas, era importante, valia taça e vaga na finalíssima. Ainda tínhamos dois jogos a cumprir, a Inter em Limeira, a Francana no Canindé. Depois, as semifinais, que seriam contra a Ponte, e as finais contra o Santos.

O dia 13 de julho era um domingo. Como sempre, o busão bege da Benfica com o escudo dos encarnados na lateral, “E pluribus unum”, que eu achava que tinha algo a ver com ônibus, mas esse “pluribus” era outra coisa, “unum”, outra ainda, surgiu no horizonte da estrada inaugurada menos de dois anos antes, o garoto se despede do pai e combina no mesmo lugar à noite, e seguimos para a partida no Major Levy Sobrinho, do glorioso Leão da Paulista.

Foi o último jogo de Enéas com aquela camisa, no caso branca com o número verde, empatamos em 1 a 1, gol dele, belo, certeza. Dias depois nosso número oito seria vendido para o Bologna da Itália, um dos primeiros brasileiros a seguir para a milionária Bota, talvez Falcão tenha ido antes, não sei se mais alguém.

Estávamos às vésperas de uma grande final, eu não acreditava naquilo, mas era muito dinheiro, aparentemente não dava para esperar, Enéas tinha 26 anos, oito como titular, perderia as semifinais, que ganhamos da Ponte, e as finais, que acabamos perdendo para o Santos.

Foi-se nosso Pelé, e a despedida não anunciada aconteceu num domingo quente de julho em Limeira, que por acaso vi, e na volta, quando o ônibus me deixou na estrada já escura, não sabíamos que tinha sido o último. O horário não bateu com o combinado com o pai, não havia celular, caminhei pelos canteiros centrais e pelos matos até avistar uma pequena luz numa pequena fábrica, e o vigia me permitiu ligar para casa e dizer mais ou menos onde estava, porque da estrada não havia como voltar para a cidade.

Voltamos eu e meu pai no carro já sem Enéas, que oito anos depois, num Monza, numa avenida da Zona Norte da cidade, aos 34 e acabado, sofreu um acidente terrível, e num hospital, alguns meses depois, num dia 27, num mês de dezembro, morreu.

Hoje faz 25 anos da morte de Enéas, o oito branco bordado na camisa vermelha, não sei se o maior que tivemos, porque houve muitos outros antes, alguns depois. Certamente o maior que o garoto da Força Jovem e da Leões, ou dos Leões, como eu dizia, viu.

É uma triste e curiosa coincidência que ele tenha morrido num 27 de dezembro, como hoje. Do meu negro esguio e elegante, restou o oito branco bordado na camisa Athleta, de tecido grosso e pesado, que nunca mais será vestida por corpo algum.

Mas é apenas uma triste e curiosa coincidência. Enéas morreu num 27 de dezembro. Nós, não.