Blog do Flavio Gomes
Brasil

O ROLEZINHO ACABOU

SÃO PAULO (próxima) – Aconteça o que acontecer nos próximos rolezinhos em shoppings, modalidade de manifestação coletiva que começou em dezembro em centros de compras da periferia de São Paulo, eles nunca mais serão rolezinhos. Como tudo nestes tempos malucos, esse negócio já foi apropriado por gente de fora. Seja pela esquerda, que procura encontrar […]

SÃO PAULO (próxima) – Aconteça o que acontecer nos próximos rolezinhos em shoppings, modalidade de manifestação coletiva que começou em dezembro em centros de compras da periferia de São Paulo, eles nunca mais serão rolezinhos.

Como tudo nestes tempos malucos, esse negócio já foi apropriado por gente de fora. Seja pela esquerda, que procura encontrar algum fundo político-sociológico-comportamental nas manifestações, seja pela direita, cuja baba escorre pelo canto da boca e consegue enxergar apenas baderna, atentado aos bons costumes, à paz e à segurança dos caixotes cheios de lojas.

Não moro na periferia e não tenho nenhum elemento para avaliar o que está acontecendo, como e por que os rolezinhos começaram, nada. Mas é claro, óbvio, factual, que jovens pobres das periferias das grandes cidades têm menos opções de lazer que jovens da classe média que frequentam lojas, cinemas e praças de alimentação dos shoppings — transformados em áreas de lazer por quem não sabe o que é rua, praça, parque, esses ambientes de convívio social mais democrático e livre. Pelo simples fato de que são pobres. Não têm dinheiro para ir a um show de música, a uma balada, aos bares mais caros, aos restaurantes chiques, aos cinemas mais bem equipados, ao teatro, nada.

Ocorre que esses jovens, hoje, usam ferramentas que há 10, 15 anos eram utilizadas pela classe média, a saber: computadores e acesso à internet. E com elas organizam seus “flash-mobs”. Sim, quando são brancos e bem-comportados, esses movimentos coletivos têm outro nome. Quando são negros e pardos que se vestem de outro jeito, andam de outro jeito, usam outros meios de se comunicar, é rolezinho. É ameaça de arrastão. É sinal de encrenca, foge da rotina artificial criada para colocar cada um no seu lugar.

Que mal existe em ir a um shopping em grupo? O comportamento é inadequado? Inadequado para quem? Qual é o comportamento adequado num shopping? Onde está escrito que um shopping separa pessoas “adequadas” de pessoas “inadequadas”?

O tal funk da ostentação é a trilha sonora da molecada que começou a fazer seus rolezinhos. Até onde se sabe, nenhuma ocorrência policial foi registrada nas “ocupações” dos caixotes de compras. A turma quer se divertir onde até há algum tempo não entrava porque não tinha grana para tomar um refrigerante. Hoje tem. Com o tempo, terão também para comprar seus tênis e camisetas de marca.

Não gosto de funk-ostentação — aliás, não gosto de funk nenhum. Não é nenhuma questão ideológica ou preconceito, acho apenas música ruim e chata. É apenas questão de gosto. Meus filhos ouvem e acham legal. Quando coloco Bossa Nova no rádio do carro, eles acham uma merda. E daí? Se para mim um barquinho que vai e uma tardinha que cai traz alguma sensação de bem-estar, para outros é um Camaro amarelo, ou os óculos Oakley, que têm o mesmo efeito. Cada um na sua. Desisti de querer moldar o gosto musical deles — depois de um certo tempo de vida, a gente percebe que querer impor gostos é arbitrário e inútil. As pessoas gostam do que quiserem, foda-se. Eu gosto de Lada e DKW. A maioria me acha maluco. De novo: e daí?

O problema é que os rolezinhos já foram contaminados. Transformaram-se em objeto de teses daqueles que observam tudo do lado de fora. A partir disso, todo mundo vai formar uma opinião, inclusive os que deles participam — o que vai condicionar seu comportamento, eliminando a espontaneidade dos primeiros. Essa já era. Cada evento terá cobertura da mídia, e cada mídia irá a esses eventos com algum tipo de ideia formada sobre sua natureza. E cada um que participar do rolezinho vai querer potencializar seu recado para a mídia. Luta de classes? Não sei.

A meninada quer ouvir música, paquerar, beijar e comprar, e ocupar os espaços disponíveis para isso. Se são os shoppings, que sejam os shoppings. O que me incomoda nisso tudo é que essa manifestação de desejos se dê numa das coisas mais abjetas já criadas pelo capitalismo globalizado: os templos do consumo. Não se ocupa uma cidade para desfrutar o que suas ruas oferecem, e sim as estruturas criadas justamente para tirar as pessoas das ruas, segregar, discriminar. Nesse sentido, sou muito mais o Carnaval que os rolezinhos. No início do século passado, as pessoas ocuparam as ruas para dançar e brincar. Imagino que tenha causado alguma estranheza, também. Talvez não tenha tido maiores reações porque eram outros tempos, em que as coisas se discutiam com menos pressa e mais tempo para maturar as opiniões.

O que querem os jovens da periferia? Fazer parte dessa engrenagem segregacionista da qual os shoppings são a grande expressão arquitetônica e urbanística? Qual recado querem dar? Que eles também podem entrar nos shoppings? Claro que podem! Ocupar espaços de convivência? Claro que podem! Se não quebrarem nada, não baterem em ninguém e não permitirem infiltração de gente mal-intencionada (que há, as manifestações de junho mostraram isso), os jovens podem tudo: cantar, beijar, ouvir música, gastar seu dinheiro nas bobagens que esses funks propagandeiam de graça — algumas grifes devem adorar terem seus nomes declamados nas letras sem ter de pagar nada por isso. Na verdade, essa sanha hedonista que infelizmente se espalhou pelas periferias dos pobres e pretos nada mais é que uma versão atualizada de algo que sempre existiu entre os ricos e brancos com suas lanchas, carrões, camisetas Lacoste e sei lá mais o quê. Branco e rico pode ostentar, preto e pobre não pode? É disso que se trata?

Mas voltando ao início, os rolezinhos já acabaram. A partir de agora, viraram atração midiática e cenário para teóricos despejarem suas opiniões definitivas, algo que a internet possibilita e que as redes sociais se encarregam de disseminar — nada mais falso, nos tempos em que vivemos, que essas verdades absolutas. Assim, deixaram de ser autênticos. O fenômeno já aconteceu, começou e terminou. O que virá daqui para a frente é outra coisa. Eu, se fosse dono de um shopping, hoje, tomaria uma única atitude. Mandaria pintar uma faixa e colocaria na porta, com os dizeres: “Sejam bem-vindos. Todos.”